Política de saúde

Intervenção de Rui Nogueira na Assembleia da República a propósito da descentralização

Na Comissão de Ambiente, Ordenamento do Território, Descentralização, Poder Local e Habitação:

No âmbito de uma audição conjunta de várias entidades sobre o processo de descentralização ocorrida num fórum promovido pela Comissão de Ambiente, Ordenamento do Território, Descentralização, Poder Local e Habitação da Assembleia da República, o presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF), Rui Nogueira, fez uma apresentação na qual defendeu que a descentralização é imperiosa. O mesmo dirigente sublinhou que “o processo de descentralização deveria ter evoluído com a consolidação dos Agrupamentos de Centros de Saúde como órgãos de gestão de proximidade, com autonomia administrativa e capacidade de decisão”.

Aqui fica a intervenção de Rui Nogueira na íntegra:

 

Ex.mo Senhor Presidente,

Senhores Deputados,

Senhoras e Senhores,

Agradeço o convite para participar neste fórum e felicito os seus organizadores e mentores.O tema suscita o debate alargado, permite o contributo útil e promove a participação ativa da sociedade.

A democracia assenta no pressuposto da autoridade partilhada entre atores políticos e sociais, através de processos de participação, de cidadania, de direitos e deveres individuais e coletivos. É com prazer que estamos na casa da democracia e na família do debate.

Como médico de família – e na qualidade de dirigente da Associação dos médicos de família portugueses – cumpre-me contribuir para este debate democrático sobre descentralização.

A descentralização é imperiosa. A sociedade portuguesa é fortemente centralizada, resultado de um longo processo social, económico e político com muitas décadas – ou séculos! – de evolução. Há uma concentração e centralização de poder político, de recursos e até de população.

De 2001 para 2011 a população residente no continente aumentou apenas 1,9%, mas na Região de Lisboa aumentou 5,8%. O envelhecimento da população é uma realidade conhecida em Portugal mas afeta mais o interior, afeta mais os pequenos concelhos.

A população residente em Portugal com 65 ou mais anos ultrapassa já os 2 milhões de pessoas – mais de 19% da população.

Mas é preocupante saber que 60% da população idosa vive só ou em companhia exclusiva de pessoas também idosas. Um fenómeno cuja dimensão aumentou 28% de 2001 para 2011.

O envelhecimento da população tem mais expressão em determinadas regiões e motiva grande preocupação quando se trabalha com pessoas, particularmente quando se trabalha com pessoas doentes. Na cidade, na vila ou na aldeia, o médico de família é o médico da pessoa, trabalha em proximidade e garante a continuidade de cuidados de saúde.

O envelhecimento não é sinónimo de dependência nem de doença, mas é frequente ser acompanhado por perdas e necessidades especiais. A família é um suporte social importante que assume responsabilidades crescentes. Todavia há limitações e nem sempre há família disponível.

Esta dinâmica, com associação do aumento da longevidade e das alterações na rede familiar, apresenta-se como uma das mais importantes tendências demográficas atuais, com influência na organização dos serviços de saúde e na utilização de recursos. Para responder às necessidades crescentes da pessoa mais velha temos que criar e mobilizar mais recursos na comunidade. O aumento das doenças crónicas e degenerativas, a multimorbilidade e a dependência ocorrem em paralelo com o isolamento social e a carência de apoio familiar. Há novos desafios no cuidar da população que ultrapassam o envolvimento apenas dos serviços de saúde.

A comunidade pode e deve ser envolvida de modo a participar ativamente nos programas de promoção de saúde pública, de vida saudável e de envelhecimento ativo: “dar anos à vida e vida aos anos” como foi referido pela OMS em 1998.

A descentralização dos Cuidados de Saúde Primários não é uma preocupação recente. Em 2005 foi iniciada a reforma dos Cuidados de Saúde Primários. O conceito central e estrutural desta reforma é o trabalho em equipa multiprofissional e a governança clínica.

A criação dos Agrupamentos de Centros de Saúde visava a descentralização de competências. A intenção era optimizar a gestão de recursos, permitir a governação epidemiológica e tomar decisões adequadas e céleres. A reforma dos Cuidados de Saúde Primários de 2005 criou um novo modelo de organização mais próximo dos cidadãos e mais eficiente.

O processo de descentralização deveria ter evoluído com a consolidação dos Agrupamentos de Centros de Saúde como órgãos de gestão de proximidade, com autonomia administrativa e capacidade de decisão. A governança de proximidade cria condições para uma gestão mais eficiente dos recursos. Ajuda a promover a saúde e a capacitar a comunidade. Valoriza os cuidados de saúde e o envolvimento das famílias e dos cuidadores.

O desenvolvimento dos Cuidados de Saúde Primários depende da capacidade de decisão próxima dos cidadãos e da comunidade. As decisões e opções de governança tomadas por órgãos poderosos e distantes, com menor conhecimento dos problemas e das necessidades, são frias e inoperantes, geradoras de despesa e ineficientes. A consolidação de unidades de saúde de proximidade é um contributo para a descentralização.

A saúde e o Serviço Nacional de Saúde são um bem que nos habituamos a defender e a valorizar. A evolução social, técnica e científica obrigam a evoluir e a investir nos Cuidados de Saúde Primários.

As unidades de saúde de proximidade são um contributo para a descentralização. São um contributo inequívoco para o desenvolvimento profissional, para a segurança do ato médico e para a defesa de cuidados de saúde de qualidade e acessíveis ao utente, independentemente da sua idade, da condição social ou da região do país onde reside.

O significado do ato médico e o valor da vida humana, a prevenção do erro e a gestão da incerteza obrigam a valorizar devidamente as condições de trabalho.

As diferentes realidades sócio-demográficas, geográficas e culturais, o estado de saúde da comunidade e os recursos técnicos e humanos disponíveis são diferentes determinantes que influenciam a saúde e a recuperação da pessoa. A acessibilidade, a continuidade, a complementaridade e a personalização de cuidados de saúde impõem a implementação de unidades de saúde de proximidade com equipas multiprofissionais que garantam equidade e cuidados efetivos, devidamente dotadas dos meios adequados às necessidades.

A localização geodemográfica da unidade de saúde e o contexto social a par com os recursos disponíveis e a participação da comunidade, são determinantes que devem ser considerados na dimensão da unidade de saúde e na gestão de proximidade.

As diferenças de acesso do utente a cuidados de saúde motivaram a nossa Associação a estudar as várias dimensões que podem influenciar o trabalho do médico de família e a complexidade da prática médica.

“A desordem obriga a criar novas formas de ordem” (in: A Teoria da Complexidade e as Organizações)

No contexto atual é urgente evoluir na resolução de assimetrias e garantir as condições de exercício profissional nas unidades de saúde de proximidade. É necessário facilitar a formação de novas unidades de saúde de proximidade em qualquer região do país, fundamentadas nas necessidades da população que servem. A limitação prevista no Decreto-Lei recentemente publicado impondo um mínimo de 4 mil utentes para criar uma USF é incompreensível à luz dos conhecimentos actuais e parece ser uma medida meramente economicista de desvalorização das pequenas vilas do país. As opções políticas não devem condicionar o acesso a cuidados de saúde nem agravar as desigualdades já existentes.

Senhor Presidente,

Senhores Deputados,

As iniquidades são conhecidas e preocupantes e exigem medidas políticas de correção. As unidades de saúde de proximidade devem ter condições equivalentes e adequadas ao contexto sócio-demográfico dos seus utentes.

A fundamentação das novas orientações políticas de descentralização deve ser robusta, realista e contribuir para a resolução das iniquidades existentes nos Cuidados de Saúde Primários.

A valorização do SNS é um imperativo que defendemos e promovemos com o investimento sustentável nos Cuidados de Saúde Primários.

É necessário reconhecer as comunidades com contextos mais complexos.

É necessário traduzir em medidas políticas o significado de investimento.

A descentralização deverá investir nos Cuidados de Saúde Primários e contibuir decididamente para a resolução das iniquidades.

Obrigado.

Disse.

 

Rui Nogueira

4 de julho de 2017

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