São cerca de sete centenas os participantes no 20º Congresso Nacional (CN) e 15º Encontro Nacional de Internos e Jovens Médicos de Família (ENIJMF) – grande parte deles médicos com menos de 35 anos – que entre 30 de setembro e 2 de outubro se juntam em Castelo Branco, para dois eventos onde o aperfeiçoamento técnico, científico mas também humano ocupa lugar cimeiro. A barreira dos 500 trabalhos a apresentar foi ultrapassada quer relativamente a pósteres, quer no que respeita a comunicações orais, números que dizem bem da capacidade de organização, criatividade, reflexão e investigação dos especialistas em MGF e internos da especialidade.
Momento muito aguardado era o da conferência de abertura do 20º CN, proferida por Luís Pisco.
O ex-presidente da APMGF e atual vice-presidente da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARSLVT) centrou as suas atenções sobre os processos de avaliação e melhoria contínua da qualidade na saúde. Realce, neste campo, para os vários mitos que foram tombando ao longo dos anos e que muitos pensavam estar associados a garantias de melhoria da qualidade nos cuidados de saúde, a saber: a informação de retorno e transparência de informação entre diferentes prestadores, a gestão descentralizada e local de serviços de saúde, o acesso no próprio dia a cuidados e consultas, o pagamento por desempenho aos profissionais de saúde e os índices de satisfação dos utentes. “Existem hoje claras evidências, provenientes de diversos estudos, que contrariam estas ideias como fundamentos para a qualidade em saúde. Isto é algo que nos deve fazer refletir”, frisou Luís Pisco.
Médicos de família estão insatisfeitos e fazem-se ouvir…
Ao dar o tiro de partida para os trabalhos do 20º CN, o presidente da APMGF, Rui Nogueira, mostrou agrado pela hospitalidade e carinho que a cidade de Castelo Branco ofereceu à organização do congresso e aos médicos de família portugueses. Referiu, igualmente, a alegria que poderá ganhar forma no início de novembro, caso seja atribuída à APMGF a responsabilidade de realizar a conferência mundial da WONCA, o roganismo que congrega os médicos de família de todo o mundo. Ainda assim, não escondeu que a especialidade e os seus representantes em Portugal vivem dias complicados e que a motivação tem vindo a decair de modo paulatino nas unidades de saúde: “estamos muito insatisfeitos, especialmente os mais novos entre nós. Insatisfeitos com os computadores e sistemas de informação, insatisfeitos pela carência de condições para acolher os colegas internos e com as condições gerais de exercício da nossa atividade”.
A luta (difícil e quase inglória) contra a super-medicalização
Numa das sessões emblemáticas da jornada de arranque do 20º CN e do 15º ENIJMF, intitulada “Sobrediagnóstico – Decisão partilhada com o utente”, abordou-se um tema de enorme complexidade e que tem estado na origem de muitas dores de cabeça para os médicos de família: como prevenir o sobrediagnóstico e a medicalização excessiva e como evitar a pressão dos utentes, que pedem mais e mais exames, sem se preocuparem com as consequências negativas de tal pesquisa?
O médico de família e investigador Bruno Heleno lembrou que a tecnologia clínica desenvolveu-se a tal ponto que é hoje possível “detetar anomalias anatómicas em pessoas saudáveis”, que caso fossem deixadas ao esquecimento não implicariam qualquer prejuízo para o doente. Contudo, muitas vezes tais descobertas desencadeiam intervenções que vêm a gerar danos irreversíveis.
O mesmo investigador reconhece que os médicos de família já são muito sensíveis a esta problemática (a MGF lidera, de facto, a guerra contra o sobrediagnóstico e a medicalização excessiva e a prevenção quaternária já entrou na rotina dos especialistas da pessoa). Porém, há que dar passos efetivos para fazer a diferença, nomeadamente “divulgar cada vez mais este problema junto da população em geral, porque de outra forma continuaremos a sofrer enormes pressões por parte dos doentes para medicalizar”.
Segundo Paulo Costa, médico na USF Serra da Lousã, esta não será uma empreitada simples: “ninguém disse que era fácil, mas na realidade temos de desmanchar as expectativas das pessoas, que estão hoje seriamente limitadas pela sua iliteracia em saúde”.
Internato de MGF continua com marcadas distâncias entre regiões
Logo após a cerimónia de abertura do 15º ENIJMF, realizou-se em Castelo Branco o debate “Diversidade nacional na estrutura e organização do Internato de MGF”. Tratou-se de uma oportunidade para reatualizar o estado atual do internato da especialidade em cada região do país (com um interno a representar cada uma das cinco regiões de saúde continentais e as duas regiões insulares) e perceber até onde chegam as disparidades na atividade assistencial e não assistencial dos internos, na avaliação, na carga e nas condições de trabalho.
Luís Pinho Costa sublinhou que o sentimento de muitos dos seus colegas do Internato de MGF na Região Norte é de desânimo, pelo facto de as vagas para novos especialistas na região serem poucas, “algo que forçará muitos a mudar de cidade, ou mesmo de região”. O mesmo clínico adiantou, ainda, que relativamente ao exame final se continua a assistir naquela região a uma “contaminação da prova curricular por questões teóricas”.
Outro tópico aflorado durante a mesa diz respeito à divisão do horário do interno. Na realidade, percebeu-se que existe uma total heterogeneidade de práticas ao longo do país (e inclusive dentro de cada região). “Oficialmente não existem indicações sobre horas de estudo e não existem regras que se apliquem a todos os internos de Lisboa e Vale to Tejo (LVT). Determinados orientadores concedem 5 horas para estudo, outros três e alguns zero horas”, exemplificou Inês Domingues, interna na Região de LVT.
Neste primeiro dia de trabalhos do 15º ENIJMF e do 20º CN, destaque também para mais uma edição da Tertúlia MGF XXI, no âmbito da qual se debateram ideias sobre o futuro da especialidade, do perfil do médico de família e dos cuidados que este prestará, à entrada da terceira década do presente século.