Prevenção da violência
De 2012 para 2013 (último ano em relação ao qual estão disponíveis dados referentes à atividade desenvolvida pela Associação Portuguesa de Proteção à Vítima – APAV), o número de atendimentos a potenciais vítimas de violência subiu de 22.747 atendimentos para 37.222, um crescimento percentual superior a 60%. Estes mais de 30 mil atendimentos resultaram em 11.800 processos de apoio, tendo sido envolvidas 8.733 vítimas diretas. Tudo indica, portanto, que há uma transformação de paradigma: os fenómenos de violência estão a aumentar em Portugal e as vítimas (ou as pessoas mais próximas delas) estão mais predispostas a procurar ajuda. Mas antes que a violência assuma outras dimensões e se manifeste em episódios reais e suscetíveis de intervenção judicial, é possível e desejável preveni-la quando surgem sinais de alarme. Neste campo, os profissionais de saúde – e em particular os médicos de família – podem desempenhar um papel importante em termos de aconselhamento precoce, sinalização e correto encaminhamento dos casos de que tomam conhecimento
No passado mês de janeiro, a APAV e a Direção-Geral da Saúde (DGS) assinaram um protocolo de colaboração histórico, na medida em que compromete ambos os signatários a desenvolverem estratégias tendentes à melhoria das condições de atendimento, informação, proteção, acompanhamento e apoio às vítimas de violência e de crime.
De uma forma resumida, o que se pretende é que as instituições em causa colaborem para criar suportes e materiais de informação à vítima ou potencial vítima, a disponibilizar através dos serviços de saúde, mas que juntem também esforços para dinamizar ações de formação direcionadas aos profissionais de saúde vocacionadas para esta temática, bem como para a construção de normas de orientação e manuais de boas práticas consensualizados entre as duas partes. Está também projetada a realização de estudos e seminários sobre este assunto e parcerias no desenho e implementação de campanhas de sensibilização e prevenção. A APAV e a DGS desejam, a partir de agora, amplificar ainda os canais para a regular partilha de informação colhida pelas duas entidades.
A entrada em vigor deste protocolo é de especial relevância na medida em que permite aproximar, uma vez mais, a única associação no país que se dedica por completo ao apoio e atendimento à vítima e o Serviço Nacional de Saúde. De facto, na última revisão do protocolo geral de cooperação entre a APAV e o Estado português o setor da saúde esteve praticamente para ser excluído, face a uma maior preponderância das parcerias estabelecidas ao nível da Justiça e da Administração Interna. Contudo, a relação entre a APAV e as estruturas públicas da área da saúde acabou por ser preservada e ganha agora novo fôlego com o protocolo assinado com a DGS. A reaproximação revela, sobretudo, que os profissionais de saúde têm um papel cada vez mais fundamental na prevenção, deteção e encaminhamento dos casos de violência, algo que tem vindo a ser expresso inclusive a nível internacional pela Organização Mundial de Saúde.
Custos da violência e do crime justificam prevenção
“Desde a nossa fundação, há 25 anos atrás, temos feito um percurso de sensibilização, com vista a envolver os profissionais de saúde nas questões relacionadas com a violência. Isto porque sabemos que os profissionais de saúde são elementos centrais no acompanhamento das vítimas, não só nos crimes mais simples e menos mediáticos (como sejam, por exemplo, os assaltos a residências, que deixam alguém ferido e a necessitar de apoio numa unidade de saúde), como nos crimes mais badalados, entre os quais figura a violência doméstica. Todas estas situações passam por profissionais de saúde e é muito importante que estes consigam sensibilizar as pessoas para os recursos existentes na comunidade, encaminhá-las e sinalizar os casos a quem de direito”, garantiu à nossa reportagem a assessora técnica da direção e coordenadora executiva do Centro de Formação da APAV, Maria de Oliveira. Esta técnica frisa que todos os médicos devem estar conscientes de que a APAV tem condições de atendimento e acompanhamento das vítimas da violência que na maioria dos casos os serviços de saúde não possuem, “já que o SNS não consegue, por exemplo, providenciar apoio psicológico de uma forma tão célere quanto seria desejável”. Daí a extrema importância de se manter “uma boa articulação entre as equipas de saúde e a APAV, sobretudo nos cuidados primários, onde trabalham profissionais de primeira linha, que quando ouvem determinados relatos devem saber que questões colocar. Em boa verdade, o médico de família é hoje uma peça chave para a identificação, sinalização e prevenção de situações de violência”.
É bom também relembrar que a comunidade e o Estado beneficiam em grande medida de iniciativas que procurem travar a violência, pelo que a prevenção do crime e da violência não é algo que beneficie apenas um individuo isolado, ou uma família. “A violência e o crime acarretam custos. Custos financeiros, mas também sociais e de saúde. Um caso paradigmático é o dos idosos que são assaltados e que depois entram em situações de hipervigilância e de instabilidade, recorrendo cada vez mais aos serviços de saúde e consumindo mais medicação”, recorda Maria de Oliveira. Daí que ao longo dos últimos anos várias entidades ligadas ao Ministério da Saúde tenham procurado sempre conservar ações de formação para os profissionais do setor, quase sempre orientadas por especialistas da APAV. “Temos de sublinhar a valia destas ações, que muitas vezes estão focadas na identificação de casos, mas igualmente em estratégias para abordar a potencial vítima. Repare-se que temos inúmeras pessoas que recorrem ao seu médico de família e se queixam simplesmente de quedas. O profissional de saúde tem de estar dotado de estratégias que lhe permitam investigar mais fundo, sem arriscar perder a confiança da pessoa. Na verdade, continuamos a ter muitos contactos de médicos que têm duvidas se estão a atuar da melhor forma, ou que não sabem abordar a pessoa da melhor maneira para lhe transmitir que existem instituições que a podem ajudar”, avança a assessora da APAV.
Neste campo da formação e do esclarecimento, a APAV tem desenvolvido várias ações de sensibilização nos centros de saúde, participado em projetos desenvolvidos pelas unidades na comunidade, para além de oferecer cursos estruturados no seu Centro de Formação (na sede da instituição) e nos diversos pólos de formação regionais.
Compromisso de confidencialidade não pode justificar o silêncio do médico
É comum os profissionais de saúde resistirem, de alguma forma, à identificação e encaminhamento de casos suspeitos de violência, por temerem um afastamento da vítima/utente, a perturbação a longo prazo do relacionamento com o doente ou por julgarem que podem desestabilizar ainda mais o núcleo familiar. Mais ainda, muitos profissionais estão convencidos de que partir para uma denúncia pode ser algo que interfere no dever de sigilo e confidencialidade a que estão vinculados. A responsável do Centro de Formação da APAV garante que nenhum profissional de saúde deve ficar refém do dever de sigilo/confidencialidade, quando suspeita que um ato de violência ocorreu ou está prestes a acontecer: “por vezes, os profissionais em ambiente de formação levantam a questão de como devem atuar, quando estão obrigados pelo dever de confidencialidade. Nestas circunstâncias, explicamos claramente que existem punições legais para quem compactuar com uma situação de crime. Ou seja, é necessário desconstruir um pouco a relação médico/doente, quando a violência é um fator presente na equação. É certo que existe uma maior sensibilização dos médicos de família para as situações de violência doméstica, mas notamos que ainda terão algum receio em relação às consequências que podem surgir, depois de agirem”. O embaraço ou a suposta complexidade da denúncia também não são argumentos sustentáveis, face às soluções existentes no terreno, declara Maria de Oliveira: “há formas de superar todos estes receios e de atuar mantendo a confiança do doente. O que muitos profissionais de saúde têm feito é ligar para a nossa linha (707 20 00 77), com o utente presente no consultório, explicando-nos o que se está a passar. A partir daí, nós encaminhamos devidamente o caso”.
Note-se que um dos trabalhos essenciais que a DGS e a APAV estão a preparar, ao abrigo do protocolo que assinaram no início do ano, passa precisamente por criar uma metodologia clara de reencaminhamento bidirecional. Isto é, definir aquilo que os profissionais de saúde devem fazer – quando um utente recorre aos serviços de saúde e necessita de apoio jurídico, psicológico, social ou qualquer outro que está ao alcance da APAV – e aquilo que os técnicos da APAV devem executar, quando uma vítima de violência se revela necessitada de algum género de assistência em saúde. Outra das tarefas agendadas é a de criar folhetos específicos para profissionais de saúde e manuais de procedimento e intervenção para casos de violência, à semelhança do que já foi feito para os grupos vulneráveis das crianças/jovens e idosos (no caso do material informativo dedicado às pessoas idosas vítimas de violência todo o desenvolvimento foi feito em parceria com a Ordem dos Médicos e a Ordem dos Enfermeiros, no âmbito de um grupo de trabalho da DGS).
A empreitada será, com toda a certeza, facilitada pelo facto de as organizações já comunicarem bem no terreno, como explica Maria de Oliveira: “temos funcionado bem em articulação com as ARS e os ACES. Na realidade, existe uma excelente colaboração entre os gestores dos gabinetes locais da APAV e a comunidade”.
Atenção aos abusos sobre os idosos
A APAV tem registado um acréscimo de relatos e denúncias de violência e coação sobre pessoas idosas, em muitos casos institucionalizadas. “Inclusive, recebemos muitas queixas de profissionais de saúde que denunciam equipamentos sociais, onde os idosos são alvo de sobremedicação ou não possuem apoio regular por parte de um médico ou um enfermeiro”, garante Maria de Oliveira. Na proteção à população sénior em risco, a assessora da direção da APAV acredita que os médicos de família podem dar um contributo muito relevante, já que “quando se apercebem que um determinado idoso está a perder a autonomia e precisará de ir para um centro de dia ou um lar, podem desde logo alertá-lo para questões e garantias fundamentais e realizarem alguma prevenção, no sentido de alcançar uma integração bem-sucedida no equipamento social mais adequado”. Da mesma forma, sempre que “o idoso refere ao médico que não tem dinheiro para pagar os medicamentos, é razoável que o médico procure entender por que aquela pessoa não tem recursos disponíveis, de modo a despistar situações de abuso financeiro. É crucial que o faça, porque com regularidade surgem casos de familiares, prestadores de cuidados ou vizinhos que gerem reformas sem poder legal para o fazer. Este é o clássico exemplo de violência que não é visível, mas que é real. Parece-nos que nos casos em que a violência não é visível e não existem marcas físicas, os profissionais de saúde ainda receiam dar o passo seguinte”, conclui Maria de Oliveira.
Sublinhe-se, a este propósito, os dados nascidos do projeto “Envelhecimento e Violência”, desenvolvido entre 2011 e 2014 e levado a cabo pelo Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge em parceria com a APAV, o Centro de Estudos de Sociologia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, o Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, o Instituto da Segurança Social e a Guarda Nacional Republicana. O estudo atrás mencionado revelou que 6,3% de uma amostra de 1123 pessoas com 60 ou mais anos de idade, contactadas por inquérito telefónico, garantiam ter sido vítimas de violência financeira ou psicológica, nos doze meses antecedentes. Pior, 12,3% dos inquiridos foram vítimas de, pelo menos, uma conduta de violência, por parte de um familiar, amigo, vizinho ou profissional remunerado.