Emigração médica
Recentemente, o Serviço Galego de Saúde (Sergas) iniciou um processo de recrutamento em Portugal (com particular incidência sobre especialistas de Medicina Geral e Familiar – MGF – e Pediatria), prometendo aos profissionais salários brutos anuais superiores a 60 mil euros, algo como o dobro daquilo que um clínico recebe no início de carreira entre nós. Entretanto, empresas de recrutamento têm procurado MF dispostos a rumar a Irlanda, onde podem receber mais de 11 mil euros mensais. Trata-se de mais uma investida internacional aos recursos médicos lusos, bastante apelativa sobretudo para os médicos jovens. Por cá, as opiniões dividem-se. Há quem considere que esta é mais uma prova de que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) não consegue reter os recursos que forma, colocando em risco a qualidade futura dos cuidados prestados aos cidadãos. Outros acreditam que se trata de uma via profissional alternativa de enorme valia, um grande desafio para muitos médicos que se lançam nas lides. Todos concordam que a comunidade médica nacional, no seu todo, fica a perder… em força, diversidade e competência.
O Sergas já veio a público contextualizar que o processo de recrutamento em causa envolve “um novo tipo de contrato de continuidade para atender a substituições, especialmente nas categorias de Medicina de Família e Pediatria”, prevendo-se que estes profissionais sejam colocados nas unidades dos cuidados de saúde primários (CSP) galegos.
Para Miguel Guimarães, este tipo de interesse representa “um sinal de que os médicos portugueses são bons e que contam com excelente formação”. Porém, o bastonário da Ordem dos Médicos (OM) não tem dúvidas de que Portugal e os portugueses ficarão a perder se esta sangria continuar e exorta os poderes instituídos (em especial a Assembleia da República e o executivo) a transformarem “as condições de trabalho” dos profissionais, de modo a estancar as saídas.
Isabel Santos, presidente do Colégio de MGF da OM, afirma que na sua opinião pessoal a apetência de muitos MF para deixarem o país está diretamente relacionada com o seu contexto de trabalho: “preocupam-me as condições de trabalho no nosso país. E não colocaria o problema exclusivamente nos baixos vencimentos. São as condições de trabalho que nos sobrecarregam, que destroem os princípios da nossa prática clínica e que ferem a nossa conduta ética e deontológica. As condições de trabalho para os MF são más. Desde logo, pelo que se lhes pede. Basta ler as Normas de Orientação Clínica da DGS, que ditam os indicadores de avaliação dos MF, para se ficar de cabelos em pé”. Esta MF recorda também “o tempo de consulta desadequado” e o sistema informático que não corresponde às expectativas: “querem fazer-nos crer que temos ótimas aplicações informáticas, mas não se interessam sobre o impacto que têm na nossa relação com o doente, nem sobre as dificuldades da sua utilização. Não interessa a qualidade das estradas ou se temos estradas, o que interessa é dar um carro. Esta inversão e desadequação de prioridades dá vontade a quem pode de fugir”.
Isabel Santos crê, em paralelo, que o SNS estaria em condições de contrariar tal tendência de esvaziamento médico se caminhasse no sentido da flexibilização: “seria bom que as unidades e os profissionais de MGF exigissem maior flexibilidade dos horários de trabalho e dos contratos nos diferentes modelos. Se uma médica ou médico com filhos quiser trabalhar (mesmo que mal pago) 30 horas por semana, isso é possível? Não, não é”.
Portugal sem trunfos na manga, na «hasta» mundial de recursos médicos
Na perspetiva de Rui Nogueira, presidente da APMGF, “a qualidade dos médicos portugueses é claramente reconhecida por estas démarches. Mas, por outro lado, estamos preocupados, porque percebemos que Portugal não consegue concorrer com os salários praticados em muitos países, ou com os oferecidos na Galiza”.
Depois, existem problemas específicos de determinadas regiões no que respeita à entrada no mercado de trabalho, que muitas vezes estimulam os jovens médicos a procurarem outras paragens, como nos explicou a presidente da Associação de Internos de MGF da Zona Norte, Ana Patrícia Dias: “os médicos de MGF, após completarem um internato de elevada exigência, vêm o seu valor reconhecido pelo Serviço Galego de Saúde, com propostas de trabalho e de remuneração sem paralelo no seu país de formação. No caso particular da zona norte, o número de vagas tem sido consistentemente insuficiente para absorver o número de especialistas que se formam todos os anos. Esta realidade certamente resultará na saída de muitos jovens médicos, comprometendo a qualidade e a acessibilidade dos CSP”.
Já João Proença, presidente da Federação Nacional dos Médicos (FNAM), garante que a perda potencial de muitos médicos resulta de uma política de saúde errada: “como não existe uma clara delimitação de setores na saúde (público, privado e social), pagamento adequado da dedicação plena e novas grelhas salariais, qualquer pessoa que acabe o curso de Medicina e o internato e com a possibilidade de receber quatro ou cinco vezes mais noutro local, vai com certeza melhorar a sua qualidade de vida noutro país. Em claro prejuízo de Portugal, face ao dinheiro gasto na formação desse profissional, do próprio médico e respetiva família (que se veem obrigados a mudar de território) e do SNS”.
O sindicalista sugere mesmo que este pode ser um dos indícios precoces do “fim do SNS, em resultado das políticas prolongadas dos últimos governos, que permitem que esta situação evolua. Não há vontade política, desde há 10 anos a esta parte, para melhorar as condições de trabalho e de remuneração dos profissionais, inclusive com congelamento de concursos públicos. Ficamos assim vulneráveis perante as propostas dos vários países, porque todos se sentem com capacidade de recrutar cá dentro e dar resposta às necessidades de vida pessoal dos colegas”.