“Alguns doentes têm máscaras melhores do que as nossas”

O presidente da Sociedad Española de Medicina de Familia y Comunitaria (semFYC), Salvador Tranche, relata na primeira pessoa as dificuldades enfrentadas pelos médicos de família espanhóis, no país que ocupa a terceira posição na lista dos territórios com maior número de infetados pelo SARS-CoV-2. A situação é dramática, os cuidados de saúde primários têm tido um envolvimento muito circunscrito na definição de estratégias e o material de proteção individual presente nos centros de saúde é mínimo.

Como está a decorrer o trabalho dos médicos de família em Espanha, nesta fase de pandemia da COVID-19?

Todos os centros de saúde implementaram um posto de triagem à porta das instalações, no qual se separam os pacientes com sintomas respiratórios de pacientes não respiratórios. Os circuitos para adultos e crianças estão também separados.

É colocada uma máscara aos doentes respiratórios, faz-se medição da temperatura e pulsioximetria e são vistos numa consulta instalada em local próximo, por um médico que está protegido com bata, luvas, óculos e máscara. Se o paciente apresenta sintomas muito leves não há lugar à investigação clínica e é enviado para o domicílio. Por outro lado, se cumpre os critérios de atenção clínica presentes no documento que criámos (disponível aqui) há lugar a uma investigação mais aprofundada e de acordo com os resultados aferidos é enviado para o domicílio ou para o hospital. No que respeita aos confinados ao domicílio, contactamos com eles a cada 24 horas. Todos os pacientes que apresentam sintomas são encarados como potenciais casos, mesmo que para o Ministério da Saúde apenas sejam casos os que dão positivo por PCR.

Neste momento, apenas se faz o teste aos pacientes graves, aos idosos com sintomatologia institucionalizados em residências e lares e aos profissionais de saúde que tenham tido contacto com um paciente com teste positivo. Isto quer dizer que deverá haver muitíssimos mais pacientes positivos do que aqueles que são declarados oficialmente. Uma vez que não temos confirmação por PCR relativamente a este número vasto de outros doentes, somos confrontados com uma taxa de letalidade muito alta, que é ilusória, porque os números são calculados sobre a população que fez PCR e deu positivo e não sobre o total real de pacientes. Refira-se, também, que indicamos sempre aos pacientes que não acorram ao centro de saúde por outros motivos e estão ser conduzidos muitos processos de gestão da doença por via telefónica.

Presumimos que já existam muitos doentes no seu domicilio, em quarentena forçada, infetados com SARS-CoV-2…

Provavelmente sim, embora não tenhamos confirmação definitiva. Pessoalmente, creio que a resposta à pandemia é muito hospitalocêntrica e as autoridades de saúde deveriam «empoderar» os cuidados de saúde primários. Teríamos que estar a dar muitíssima mais atenção aos cuidados domiciliários, dado que mais de 80% dos infetados apresentam um quadro de sintomatologia ligeira.

Como estão a acompanhar estes doentes?

Optamos por um seguimento telefónico. Salvo se existir um agravamento do estado de saúde, que caso se verifique implica uma visita ao domicílio. Durante o seguimento telefónico guiamo-nos pela check list que está integrada no documento de valoração clínica criado pela semFYC.

Também fazemos o seguimento dos pacientes que recebem alta hospitalar através da mesma metodologia, com chamada telefónica a cada 24 horas.

E como estão a efetivar o diagnóstico?

O diagnóstico é clínico. Dizem-nos que dentro de alguns dias iremos receber kits de diagnóstico rápido, embora saibamos de antemão que nos primeiros 3 a 5 dias dão resultado negativo (falsos negativos).

Como se processa a atividade diária nos centros de saúde para atender os doentes crónicos e situações agudas?

As consultas estão vazias porque temos vindo a informar os doentes de que não devem acorrer aos nossos serviços. São contactados por telefone e apenas se for realmente necessário são aconselhados a vir ao centro de saúde, ou então visitamo-los no domicílio. Mas posso dizer, com toda a segurança, que estamos a descurar os pacientes que não têm coronavírus.

O que nos pode dizer relativamente à disponibilidade de equipamentos de proteção individual nos centros de saúde?

A situação é má, francamente má. Há um número muito elevado de profissionais de saúde infetados devido ao facto de não existirem equipamentos adequados. Em cada centro de saúde existem dois ou três EPI (fatos de proteção, com óculos e luvas). Muitas pessoas desenvolveram alternativas com recurso a sacos de lixo, plásticos, etc. Alguns doentes têm máscaras melhores do que as nossas.

Na realidade, dispomos apenas de batas de papel e máscaras cirúrgicas e começámos a reciclar os óculos e as máscaras. O contexto é igualmente problemático no que se refere aos domicílios, onde no mínimo é preciso usar bata de papel, máscara e luvas. A situação é particularmente grave em Madrid. Ao que parece, o governo vai conseguir obter mais material de proteção individual nos próximos dias.

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