O primeiro dia de trabalhos das 6ªs Jornadas do Grupo de Estudos de Doenças Respiratórias (GRESP) da APMGF ficou marcado por uma discussão de enorme atualidade: faz sentido criar um plano integrado e uma consulta estruturada de doenças respiratórias nos cuidados de saúde primários (CSP), sobretudo numa fase pandémica em que as restrições ao trabalho clínico são notórias?
A resposta parece ser sim, mas de acordo com um modelo muito específico e adaptado não só a este tipo de doentes, mas também à conjuntura presente. Neste quadro, o GRESP propôs nestas jornadas uma estratégia dedicada em três passos, com um momento de planificação e identificação de doentes alvo, com recurso às listagens acessíveis através do Módulo de Informação e Monitorização das Unidades Funcionais (MIM@UF), seguido de uma consulta não presencial preparatória e, por último, uma possível consulta presencial, com apoio de equipa multidisciplinar. Tiago Maricoto – médico de família na USF Aveiro/Aradas e docente na Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade da Beira Interior – explica um pouco melhor como este procedimento pode decorrer: “depois de identificados os doentes prioritários, podemos contactá-los previamente sem uma consulta presencial. Em consulta não presencial (um trabalho que pode ser feito por médicos ou enfermeiros) podemos concretizar uma breve avaliação clínica dos sintomas dos doentes, saber se estão clinicamente bem controlados, identificar co-morbilidades importantes que mereçam otimização terapêutica, detetar fatores desencadeantes de crises e, de forma remota, aconselhar os utentes a evitarem exposição a esses fatores, para além de promover a adesão à terapêutica. Finalmente, na consulta presencial que realizamos com os doentes que identificamos como adequados para tal, devemos envolver a equipa de saúde que nos ajudará a fazer intervenções chave, como a vacinação antigripal e antipneumocócica ou a revisão da adesão e da técnica inalatória (…) É importante também neste momento desenvolver um plano de ação individualizado para o doente, que o ensine a gerir a asma ou a DPOC quando em casa e de maneira a evitar que ele possa entrar a toda a hora no circuito COVID, porque teve um agravamento da tosse ou da dispneia”.
Outra via de intervenção, alternativa a uma consulta estruturada de doenças respiratórias, passa por uma abordagem centrada na multimorbilidade, já que não raras vezes os doentes respiratórios são também diabéticos ou hipertensos, como adiantou Eurico Silva, médico de família na USF João Semana e assessor para as doenças respiratórias do ACES Baixo Vouga: “a multimorbilidade pode ser uma resposta neste ano em que estamos muito condicionados em termos de acesso presencial. Isto não para todas as doenças respiratórias, mas para algumas em particular. Sabemos que nos nossos ficheiros, por exemplo, mais de metade dos doentes com DPOC têm um diagnóstico de diabetes ou HTA. Tal significa que eles já são vistos nas nossas consultas e que resta incluir a avaliação das doenças respiratórias nessas mesmas consultas, até porque um doente é um todo e não uma só patologia”. Esta segunda proposta parece agradar mais a Jaime Correia de Sousa (professor associado da Escola de Medicina da Universidade do Minho, ex-coordenador do GRESP e do International Primary Care Respiratory Group – IPCRG): “enquanto MF que exerce desde há muitos anos, não sinto necessidade de uma consulta estruturada seja para o que for. Sinto é necessidade de ter boas práticas estruturadas dentro da minha consulta (…) Porventura, poderemos optar por periodicamente ter uma abordagem estruturada para doenças respiratórias, por exemplo com uma consulta anual em que a preocupação principal incide sobre a doença respiratória, não se deixando de abordar a pessoa na sua multimorbilidade”.
João Ramires, presidente do Conselho Clínico e de Saúde do ACeS Lisboa Norte, frisou nas Jornadas que é significativa a disparidade entre unidades funcionais daquele ACeS, no que respeita ao volume de diagnósticos codificados de doenças respiratórias, à realização de espirometrias e consultas e a outros indicadores centrais no campo respiratório. O dirigente frisou, ainda, o seu espanto quando se apercebeu que as doenças respiratórias não infeciosas estavam ausentes do plano local de saúde vigente naquele ACeS. João Ramires partilhou algumas das ideias que o seu Conselho Clínico e de Saúde poderá desenvolver, com vista a melhorar a atenção dada às doenças respiratórias nesta parte do país, desde logo “uma caracterização da situação atual no ACeS em termos globais e em cada unidade funcional, mostrando o que se faz de bem e o que poderá ser replicado por outras. Ponderamos a criação de um grupo de interesse no ACeS, pretendemos fazer a revisão do plano local de saúde, divulgar boas práticas, dar continuidade às jornadas conjuntas entre o nosso ACeS e o Centro Hospitalar Lisboa Norte e projetar uma eventual consulta específica de doenças respiratórias ou uma consulta matricial, apoiada pelos colegas hospitalares de Pneumologia”.
Para Cristina Bárbara (diretora do Serviço de Pneumologia do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte e diretora para a área das Doenças Respiratórias na Direção-Geral da Saúde – DGS), torna-se desde logo óbvio que os doentes respiratórios e os fumadores constituem grupos de risco, que devem ser protegidos relativamente ao SARS-CoV-2: “os doentes respiratórios encontram-se particularmente vulneráveis porque têm um maior número de recetores da enzima conversora de angiotensina 2, um problema realmente acentuado nos doentes com DPOC e fumadores. Ora sabe-se que estes recetores são extremamente importantes na COVID-19, porque é a eles que o vírus SARS-CoV-2 se vai ligar”. Daqui resulta que a vigilância sobre os doentes respiratórios deve ser reforçada neste período, assim como devem ser feitos esforços redobrados para efetivar a cessação tabágica. Relativamente à possibilidade de se disseminarem consultas estruturadas de doenças respiratórias nos CSP, a diretora para a área das doenças respiratórias na DGS acredita que, caso avançassem, concorreriam para “monitorizar o controlo da doença respiratória”.
Cristina Bárbara anunciou ainda em primeira mão, nestas jornadas, que será iniciado em breve o processo de preparação de uma nova orientação técnica para a realização de espetrometrias nos CSP, para qual deverão concorrer também os contributos do GRESP.