No final de 2020, ano difícil para o Serviço Nacional de Saúde (que a juntar às conhecidas fragilidades viu surgir uma pandemia de repercussões inimagináveis), a Fundação para a Saúde – Serviço Nacional de Saúde (FSNS) difundiu o Manifesto SNS 2021, que apela à rápida aplicação no terreno dos princípios contidos na nova Lei de Bases da Saúde. Na entrevista que se segue, o presidente da FSNS e médico de família Victor Ramos explica em detalhe quais as mudanças estruturais no sistema de saúde que não podem ser adiadas, sobretudo após o impacto do SARS-CoV-2.
Por que escolheu a Fundação este momento, em particular, para lançar o Manifesto SNS 2021?
Victor Ramos – A aproximação de um novo ano leva-nos habitualmente a formular desejos, assumir compromissos, formular votos, etc.. Tanto na nossa vida pessoal, como na vida coletiva, em sociedade. E, depois de tudo o que se passou este ano, 2021 poderá trazer importantes oportunidades de mudança. Daquelas que só acontecem uma vez na vida de uma geração. Mas, por outro lado, o “Manifesto SNS 2021”, pode também ser visto como mais um marco num percurso de sete anos. Um caminho de construção de pensamento crítico, de organização de debates, de auscultação de perspetivas, de acolhimento de ideias, de organização de conhecimentos, de formulação de propostas. Em 2013, a Fundação SNS organizou o I Congresso SNS: Património de Todos, em Lisboa, na Reitoria da Universidade de Lisboa. Dele resultou o livro “Serviço Nacional de Saúde – Para um Conversação Construtiva”, editado em 2014. Em 2016, o II Congresso, no Porto (Teatro Rivoli), deu continuidade àquela “conversação construtiva”. Foi então publicado o livro – “Porto Saúde – Momento e Movimento”, obra notável a vários títulos: artístico (pelas fotografias de Renato Roque e ilustrações de Alberto Péssimo), cultural, histórico e técnico-científico, através de contributos de cinquenta autores – “… um pontuar de olhares para os sucessivos tempos da saúde no Porto e em Portugal”. Foi mais um passo no contributo construtivo que a Fundação tem vindo a dar de modo sistemático, atento, prudente, paciente, coerente e persistente.
Em 2018, no III Congresso SNS, em Coimbra, no Convento de S. Francisco, tivemos a infelizmente última participação pública de António Arnaut que, apesar do seu estado de saúde, quis dirigir um mensagem marcante aos participantes no Congresso. Em 2019, muitas das ideias e sínteses até então produzidas foram reunidas no livro: “Serviço Nacional de Saúde – Breve Interpretação e Linhas para a sua Transformação”. Em 2020, o SNS foi submetido à prova de fogo da COVID-19. Vários membros da Fundação, e a própria direção, publicaram diversos artigos e documentos. Decidiram compilá-los no livro “Para um Serviço Nacional de Saúde (ainda) Melhor”, editado em setembro. O “Manifesto SNS 2021” e o IV Congresso SNS (desta vez via on-line) são, portanto, marcos que decorrem e dão seguimento ao percurso descrito.
Estamos convictos de que o ano de 2021 poderá ser, pela conjugação de vários fatores, o ano do renascimento do SNS. As quatro sessões do IV Congresso SNS (dezembro 2020) destacaram quatro pilares essenciais para sustentar e assegurar esse renascimento: a integração de cuidados centrada na pessoa; as redes de proximidade para a continuidade e coerência dos cuidados; as profissões e os profissionais do SNS; e a necessidade de reforçar e transformar o SNS como um todo. Estes são, também, componentes centrais e estruturantes do “Manifesto SNS 2021”.
Com a pandemia em curso e a tutela preocupada com estratégias de resolução da mesma, será expectável que em 2021 tenhamos alguns dos avanços preconizados na Lei de Bases da Saúde no terreno? Teremos de esperar por 2022?
O “Manifesto SNS 2021” tem também essa preocupação. Seria danoso para a saúde dos cidadãos, das comunidades e da população adiar por mais um ano as mudanças estruturais necessárias para valorizar e renovar o SNS. É, mais do que nunca, necessário e oportuno transformar o SNS para dar respostas ainda mais qualificadas ao complexo conjunto de necessidades de saúde da população. A COVID-19 terá de continuar a ser uma das prioridades, mas a fração das cerca de 90% das restantes necessidades de saúde não poderá ser descurada. Por outro lado, o SNS deve deixar de ser uma organização tão desligada como é. Com fieiras institucionais e com silos profissionais com frequentes dificuldades de comunicação e de cooperação entre si. Perduram hiatos e fossos onde o cidadão se perde. Na prática, ainda existe fraca integração e continuidade de cuidados centradas na pessoa.
Teme que um novo ciclo político no país possa vir a desvirtuar os princípios e as ideias contidas naquela importante legislação, enfraquecendo ainda mais o SNS?
Sinceramente, não vejo as coisas desse modo. É claro que uma Lei estruturante como a Lei de Bases da Saúde não pode ficar na gaveta à espera de dias calmos. Mas também sabemos que não basta regulamentar uma Lei para que a realidade mude completamente. A aplicação da Lei de 1990 ilustra isso, embora numa ótica contrária.
Em sistemas sociais complexos como o da saúde, e especificamente o SNS, não é possível decidir a sua configuração futura como quem escolhe um prato no menu de um restaurante. Há, pelo menos, oito ordens de fatores que condicionam o presente e determinam as possibilidades de evolução futura, designadamente: a) o lastro cultural, histórico, institucional e sócio-organizacional; b) o contexto socioeconómico e sócio cultural; c) a adequação, consistência e coerência das escolhas políticas que vão sendo feitas; d) circunstâncias e acasos externos (crise petrolíferas; crises financeiras, pandemias, inovações disruptivas, etc.); e) as transformações tecnológica e digital; f) as aspirações, inteligência, determinação e intervenção dos profissionais (na sua maioria altamente qualificados); g) os níveis de participação, de exigência e as expectativas dos cidadãos (acionistas e beneficiários do SNS); h) as lideranças estratégicas existentes, sobretudo clínicas, mas também organizacionais.
Os processos de mudança e transformação sistémica são, portanto, muito complexos e requerem intervenções em vários pontos essenciais, simultâneas ou coordenadas, e sempre integradas. Porém, sistemas bem enraizados no tecido social e que correspondem às suas aspirações e expectativas, como é o caso do SNS, são muito resistentes e resilientes. Conseguem aguentar negligências e maus tratos e sobreviver-lhes. Mas não são eternos. Há que intervir e cuidar deles com atenção, competência e continuidade.
Estamos convictos que 2021 e anos vindouros podem ser favoráveis à revitalização do SNS. Um ponto essencial a ter conta é o da gestão das mudanças necessárias. Os dispositivos habituais da administração têm sido, em geral, ineptos para tal. Inclusivamente, chegam a ser obstáculos. Houve vários episódios comprovativos deste facto ao longo da reforma dos cuidados de saúde primários, desde 1996 até ao presente.