Long Covid no 38º ENMGF – “Os doentes que tiveram Covid-19 não podem nem devem ficar esquecidos”

A especialista em Medicina Interna Carla Araújo – Hospital Beatriz Ângelo (Loures) – membro do Gabinete de Crise para a Covid-19 da Ordem dos Médicos e do Núcleo de Estudos de Urgência e do Doente Agudo da Sociedade Portuguesa da Medicina Interna (SPMI), será um dos convidados da mesa «Long Covid», a realizar no 38º Encontro Nacional, em conjunto com o médico de família Bruno Reis (USF Santo André de Canidelo) e a neurologista Vanessa Oliveira (Centro Hospitalar Universitário do Porto). Na entrevista que se segue, explica a importância de no futuro os médicos de família utilizarem ferramentas que lhes permitam avaliar em detalhe a progressão dos efeitos a longo prazo da Covid-19, após a fase aguda da doença.

 

Parece hoje já evidente que muitos dos doentes que tiveram Covid-19, uma vez ultrapassada a fase aguda da doença, sentem alterações no seu quotidiano que podem ser avaliadas como sequelas da infeção. Este é um fenómeno que preocupa a classe médica portuguesa, ou esta é ainda uma fase onde todas as atenções têm de estar concentradas nas medidas de prevenção, vacinação e no tratamento dos doente agudos?

Carla Araújo – Quem trata estes doentes, no internamento ou em ambulatório, ou os acompanha em consulta, sabe que o foco está ainda muito dirigido à fase aguda. Falo aqui, sobretudo, das medidas do governo, Ministério da Saúde e Direção-Geral da Saúde. Estes doentes precisam, de facto, que alguém olhe para eles no âmbito de uma estratégia nacional de abordagem. Posso relembrar, aliás, que a 25 de fevereiro de 2021 a Organização Mundial da Saúde já tinha alertado para os efeitos a longo prazo da Covid-19, defendendo que as pessoas que conhecem esta sintomatologia tem de ser encaminhadas para serviços de saúde e acompanhadas por equipas multidisciplinares. Sabemos também, pelos dados internacionais, que aproximadamente 10% dos doentes que tiveram infeção pelo vírus SARS-CoV-2 apresentam sintomas que perduram no tempo, que podem ir além das 12 semanas ou inclusive para lá dos seis meses.

E de que sintomatologia estamos a falar, especificamente?

É muito variada. No caso do doente que esteve em unidade de cuidados intensivos ou em enfermaria, com atingimento pulmonar, pneumonia bilateral grave, que teve necessidade de estar sob ventilação mecânica ou ventilação não invasiva, estão plenamente identificadas as sequelas pulmonares com fibrose, pelo que a pessoa é, em regra geral, acompanhada a longo termo por várias especialidades, como a Medicina Interna, a Pneumologia e a Medicina Física e de Reabilitação.
Contudo, há que considerar os doentes assintomáticos ou que tiveram sintomas leves da doença e que foram tratados em ambulatório ou no domicílio. Estes também podem conhecer sintomas a longo prazo relacionados com a doença e que não devem ser negligenciados.

A propósito dessa distinção entre doentes graves e não graves, a nível internacional têm-se desmultiplicado as evidências de que o impacto a longo prazo da Covid é uma questão séria e muitas destas investigações sugerem que são os doentes que tiveram formas de doença grave que maior risco de Long Covid apresentam. Isto faz sentido, tendo em consideração aquilo que conhecemos desta patologia e de outras patologias infeciosas?

Este coronavírus tem sido extensamente estudado nos últimos dois anos e já se sabe muito também sobre as sequelas, pelo que o acompanhamento a longo prazo dos doentes começa a ser mais diferenciado. Em Portugal, os hospitais têm vindo a organizar-se de forma isolada, criando consultas pós-Covid, porém não existem grandes estudos nacionais que nos mostrem os dados e a realidade portuguesa. É certo que recentemente se publicitou um estudo realizado no Hospital de São João, o qual revelava que 40% dos doentes apresentavam sequelas, mas temos de ter atenção que estes dados se referem apenas a doentes graves, que estiveram internados. Se quisermos fazer uma extrapolação para o universo português global e percebermos que o nosso país terá cerca de 900 mil infetados desde o início da pandemia, então pela evidência de que hoje dispomos perto de 90 mil pessoas poderão necessitar de apoio para lidar com sequelas. É importante mencionar que uma das principais tarefas que teremos em mãos é a de identificar corretamente estas sequelas, algo para o qual já existem escalas que estão validadas a nível internacional, com vista a avaliar problemas como dispneia, fadiga, alterações de pele ou da língua (Covid tongue), perda prolongada de olfato, sintomas neuro-cognitivos ou do foro psiquiátrico, insónia, irritabilidade, falta de concentração ou de memória. Será, portanto, fundamental contarmos com pessoas especializadas nesta área, que saibam diagnosticar com precisão tais sequelas, permitindo depois um tratamento atempado destes sintomas, que interferem muito com a qualidade de vida dos doentes.

Falemos então um pouco desse estudo do Hospital de São João, o qual revelou que 40% dos doentes mantêm sintomas três meses depois da infeção, com especial enfoque na fadiga, distúrbios de sono e sintomas depressivos. Fará sentido aprofundar a investigação nos grandes centros hospitalares portugueses para melhor conhecer esta realidade noutros locais?

Sem dúvida. Defendo que quanto melhor conhecermos este inimigo, melhores serão as nossas probabilidades de tratar bem os doentes E não é somente na dimensão hospitalar que devemos fazer esse esforço de investigação. Recordo que muitos doentes são seguidos em ambulatório e no domicílio com o apoio do Trace-Covid e esta ferramenta pode ser utilizada para este fim, gerando-se questionários automáticos no final das 12 semanas com perguntas simples para o doente, que nos permitam averiguar quais os doentes que mantêm sintomas e que poderão vir a precisar de uma consulta com o médico de família (MF), ou com a Medicina Interna para fazer uma abordagem geral e depois orientar para outras especialidades hospitalares.
Todavia, para que
tudo isto se concretize, é essencial que consigamos uniformizar o conhecimento destes doentes, sendo prioritária uma base de dados nacional (onde todas as sequelas sejam registadas) e a partilha de informação entre os vários centros hospitalares, com vista a conhecer a fundo a nossa amostra e caracterizá-la em termos de idade, género, fatores de risco, comorbilidades associadas, áreas geográficas de residência, etc. Quanto melhor for esta caracterização, mais facilmente conseguiremos desenvolver as consultas multidisciplinares de que estes doentes vão necessitar e uma linha de referenciação nacional.

E o que podem e devem fazer os MF, à medida que acompanham estes doentes três, seis meses, um ano após terem superado a fase aguda, para detetar e mitigar os efeitos a longo prazo? Seria importante a criação de ferramentas clínicas estruturadas como questionários, ou algoritmos de diagnóstico, especificamente para estes doentes e para os CSP?

Claro que sim. Nomeadamente inquéritos muito simples, através do qual seja possível determinar quando surgiu a doença, que sintomas as pessoas sentiram em fase aguda e que sintomas apresentam no momento da avaliação. Por via destas perguntas dirigidas especificamente para a procura de sintomas torna-se possível encontrar os doentes que necessitam dos nossos cuidados e de uma eventual consulta com equipa multidisciplinar. É importante que o primeiro profissional de saúde que aborda estes doentes (que muitas vezes é o MF) tenha ao seu dispor um mecanismo para identificar as sequelas e referenciar as pessoas a consultas diferenciadas nas quais meios complementares de diagnóstico possam ser feitos. Isto é relevante porque existem situações em que é fundamental, por exemplo, excluir um eventual atingimento cardíaco, que pode envolver miocardite, pericardite ou evolução para insuficiência cardíaca. Os doentes que tiveram Covid-19 não podem nem devem ficar esquecidos. A fase aguda é para tratar – até porque se enquadra numa emergência sanitária – mas devemos ter a consciência de que em Portugal pelo menos 90 mil pessoas vão ter necessidade de recorrer ao sistema de saúde para debelar sequelas, o qual terá de funcionar bem como um todo para responder a este desafio.

Embora a Covid-19 ainda encerre muitas dúvidas julga ser seguro afirmar que por mais duradouros que sejam os seus efeitos, após a fase aguda, esta doença nunca se irá cronificar, mesmo que seja apenas numa minoria de casos?

Neste momento, com base nos dados de que dispomos, não conseguimos afirmar de modo perentório que tal seja uma certeza. O que sabemos é que vários estudos sugerem que durante os seis meses iniciais a fase inflamatória pode potenciar manifestações clínicas mas que, após este período, os sintomas em geral revertem e o doente volta ao seu estado basal. Dito isto, também não podemos esquecer que quando se verifica atingimento pulmonar no doente surgem com frequência sequelas como a fibrose pulmonar, essa sim com capacidade para se transformar em patologia crónica.

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