Recuperados da COVID não podem ser abandonados

Sessão central do 38º Encontro Nacional de MGF, pela preponderância e atualidade dos tópicos abordados, a mesa «COVID Longo» procurou analisar em Braga um fenómeno em grande medida ainda desconhecido da comunidade médica e científica: como irão evoluir e de que cuidados específicos necessitarão no futuro os doentes infetados e recuperados da fase aguda da COVID-19. E sobretudo, que apoio deverão prestar os médicos de família aos utentes da sua lista que apresentem sintomas a longo prazo, como podem reconhecer os sinais de um quadro de COVID Longo, que estratégias terapêuticas e de referenciação devem adotar.

Para Carla Araújo, médica internista do Hospital Beatriz Ângelo e membro do Gabinete de Crise para a COVID-19 da Ordem dos Médicos, é fundamental que se perceba “que estes doentes são um todo e muitas vezes descompensam também as outras patologias crónicas que têm. Por exemplo, um doente que faça dexametasona durante o internamento pode depois ver a sua diabetes descompensada. É por esta razão que eu sempre defendo que devemos trabalhar em equipa e defendo que os médicos dos CSP e os colegas hospitalares têm de comunicar melhor. Existem, de facto, centros hospitalares que dão alta ao doente e este regressa ao seu MF, mas sem que exista uma boa articulação e comunicação. Nestes doentes de COVID mais graves, que nos preocupam, penso que deveria existir um seguimento programado em partilha pelos dois lados”.

A internista estimou que em Portugal 10% dos doentes recuperados da COVID-19 podem ter sequelas a médio e longo prazo: “há imenso imediatismo a recair sobre a fase aguda e os doentes internados, mas pouco se fala das sequelas e muitos doentes sentem-se perdidos. Estão em casa, ou já no trabalho, têm sintomas mas não os conseguem relacionar com a COVID-19. É, portanto, essencial apostar também na literacia em saúde, criar guias, manuais e outro tipo de literatura publicada para que as pessoas estejam alerta”. Segundo Carla Araújo, é ainda urgente dar passos para que o COVID Longo seja melhor gerido pelo sistema de saúde em Portugal, a começar pelo desenvolvimento de um protocolo de abordagem às sequelas pós-COVID, sem esquecer a necessidade de uma norma da DGS (já há muito prometida) para o acompanhamento destes casos. “Quem tem sequelas precisa de ter ajuda!”, afirmou no Encontro Nacional Carla Araújo.

Já Bruno Reis, médico de família na USF St. André de Canidelo (ACeS Grande Porto VII), recordou a importância de privilegiar “a participação ativa dos doentes. Devemos incentivar que sejam eles que identifiquem os sintomas que persistem (…) e dar-lhes as ferramentas e informações necessárias que possam procurar atempadamente cuidados de saúde, quando deles necessitam”. Por outro lado, Bruno Reis reforçou que cabe ao médico de família preocupar-se com mais do que a sintomatologia: “enquanto MF devemos ter sempre presente a avaliação do score social, sobretudo entre os idosos, o impacto financeiro, ou a eventual perda de emprego e do suporte comunitário”. Há ainda que considerar a dimensão da Saúde Mental. Na perspetiva do médico da USF St. André de Canidelo,“na presença de sintomatologia do ponto de vista psicológico e psiquiátrico, temos a obrigação de perceber se tal não será consequência da COVID-19, não somente devido à infeção em si, mas também em resultado do isolamento imposto durante a pandemia e o período de infeção”. Sendo a fadiga o sintoma mais vulgarmente descrito por estes doentes, Bruno Reis deixou bem claro que “existe hoje uma falta de evidência sobre o tratamento específico desta fadiga, pelo que é ainda mais imperiosa a auto-gestão do doente face aos sintomas e as medidas de conservação de energia e, em situações mais graves, o recurso a programas de reabilitação”.

A neurologista do Centro Hospitalar Universitário do Porto (Hospital de Santo António) Vanessa Oliveira é uma das dinamizadoras de um estudo que conseguiu apurar um número impressionante a partir de uma amostra de doentes que tiveram Covid e foram tratados e internados em cinco hospitais do Norte de Portugal: a partir dos processos clínicos revistos foi possível verificar que 36,2% dos doentes internados tinham manifestações neurológicas.“As principais conclusões deste estudo são que os sintomas neurológicos são frequentes no doente em internamento, associados a acrescido grau de incapacidade e que os doentes hospitalizados com sintomas neurológicos são, em regra, mais jovens”, esclareceu a neurologista. Mas talvez mais surpreendentes são os resultados de um segundo estudo, este prospetivo, envolvendo todos os doentes com teste positivo no Hospital de Santo António entre março e abril de 2020, com COVID ligeira ou grave. Estas pessoas realizaram questionário telefónico estruturado aos três meses e depois consulta presencial e exame neurológico completo (assim como aplicação de escalas) aos 12 meses. Entre os 476 pacientes que conseguiram terminar o follow-up a doze meses, 50,2% apresentavam queixas de condicionamento cognitivo um ano após o internamento. “Os doentes relataram sobretudo dificuldade de concentração, sensação de menor capacidade para reter nova informação e, por vezes, dificuldade em encontrar palavras no contexto de discurso, ou dificuldade em executar algumas tarefas que previamente cumpriam com facilidade”, clarificou Vanessa Oliveira.

O terceiro dia do 38º Encontro Nacional foi o escolhido para a realização da Feira APMGF, espaço no qual 18 delegações regionais e distritais e grupos de estudos da APMGF tiveram a possibilidade de mostrar os seus projetos e trabalho, promover eventos e produção técnico-cientifica e convidar colegas a colaborarem no futuro com estas estruturas, em benefício da APMGF, da MGF e dos utentes da saúde em Portugal.

 

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