No passado dia 13 de novembro a Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF) realizou, na cidade do Porto, uma reunião alargada centrada no tema “Um Novo Futuro para a Medicina Geral e Familiar em Portugal”. Para além de representantes dos órgãos sociais da APMGF, das suas delegações distritais e regionais, dos grupos de estudo e da Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, foram ainda convidados elementos ligados aos departamentos académicos de Medicina Geral e Familiar (MGF) das escolas médicas portuguesas, diretores executivos e presidentes de conselhos clínicos e de saúde de agrupamentos de centros de saúde e agentes com papéis de relevância nas estruturas do internato de MGF e nas comissões de internos da especialidade. No total, marcaram presença cerca de 40 participantes, que durante parte da reunião estiveram divididos por grupos focais.
Para Nuno Jacinto, presidente da APMGF, torna-se óbvio que “a pandemia de Covid-19 veio acentuar muitas das dificuldades que vivíamos já na nossa prática clínica e reforçar, ainda mais, a necessidade de repensarmos o que são os cuidados de saúde primários (CSP) hoje em dia, como se encontram os médicos de família (MF) neste momento, onde queremos estar daqui a 10 anos e qual o caminho que devemos escolher para lá chegar”. Daí a necessidade que a APMGF sentiu de “dar voz aos colegas, perceber quais as suas angústias e na sua opinião os conceitos associados à MGF que deveriam ser revisitados, qual o papel da APMGF, o que vai bem e menos bem e o que devemos fazer para que consigamos chegar onde todos ambicionamos estar, no prazo de uma década”.
Tendo por base a obra conceptual de referência para a especialidade no nosso país publicada há 30 anos, celebrizada pelo nome «Livro Azul», a APMGF quis assim revitalizar um movimento de criatividade e mudança, com o intuito de dar o tiro de partida num novo processo renovador, centrado nas necessidades da MGF e dos utentes que serve. “Esta reflexão terá, com toda a certeza, mais passos e irá desenvolver-se nos próximos meses, culminando (assim o esperamos) num documento orientador para os próximos anos de crescimento da MGF”, explica Nuno Jacinto. Para este dirigente, algumas das medidas sugeridas poderiam ser aplicadas no momento seguinte ao encontro, outras são mais complexas e carecem de maturação. De qualquer forma, o mais importante é que a APMGF abriu as portas ao debate de “problemas e soluções” e que se gerou uma dinâmica a partir da qual os MF podem “ajudar a gerar as respostas às questões fundamentais” e que estas respostas possam ser colocadas um dia em prática, “quando nos perguntarem o que deve ser feito nos CSP em Portugal”.
De acordo com Eunice Carrapiço, diretora executiva do Agrupamento de Centros de Saúde (ACeS) Lisboa Norte, “é importante felicitar a Associação por manter o espírito de auscultação e de reflexão conjunta sobre o presente da especialidade e as principais linhas orientadoras do futuro da MGF no nosso país”, bem como pela vontade de garantir “uma boa representatividade da Medicina Familiar, já que estiveram no encontro pessoas das diversas regiões e com vários papéis (médicos do SNS e de fora do SNS, pessoas que ocupam diversas posições de coordenação nos serviços de saúde e na academia, jovens médicos e médicos com mais experiência, etc.)”.
Segundo Miguel Azevedo, MF na USF Arca D`Água (ACeS Porto Oriental) e membro do conselho fiscal da APMGF, é essencial relembrar que “a APMGF lançou as bases para o desenvolvimento da MGF no «Livro Azul», lançado em 1990” e que “decorridos mais de 30 anos, importa revisitar os sonhos de então e «futurar», novamente, a MGF que pretendemos alavancar”. Já Raquel Braga, professora auxiliar convidada no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar e MF na USF Lagoa (ULS Matosinhos), pensa que “a organização deste encontro foi muito oportuna. De facto, estamos num momento de viragem, a reforma dos CSP estava num processo de desaceleração e a pandemia veio trazer uma nova realidade, que vai certamente modificar para sempre a nossa prática. O facto de APMGF tomar esta iniciativa e voltar a uma intervenção ativa no destino da carreira, da disciplina académica e da nossa especialidade parece-me muito útil e louvável”.
Boas ideias a reter… e se possível a implementar
Foram muitas e ricas as propostas discutidas na reunião da Invicta, a grande maioria delas com potencial para transformar para melhor a MGF e os CSP nos próximos anos. Nuno Jacinto salienta, por exemplo, a discussão em torno de “tarefas de baixo valor ou de valor muito reduzido para os MF que necessitam de ser reanalisadas, no âmbito da totalidade dos perfis dos profissionais que trabalham nos CSP portugueses”. A este propósito, a diretora executiva do ACeS Lisboa Norte acrescenta ter sido útil debater a “redefinição dos papéis dentro da equipa de saúde familiar, com a assunção de que uma série de atividades, relacionadas com a prevenção da doença e promoção da saúde, devem sair da alçada do MF e ficar na dependência de outros profissionais, nomeadamente do enfermeiro de família, de modo a que o MF fique dedicado àquilo em que é especialista e no domínio em que não pode ser substituído; o diagnóstico diferencial e tratamento da doença”. Ainda neste campo da «libertação» dos especialistas clínicos da pessoa e da família para as suas tarefas nobres, Miguel Azevedo frisa que “o MF é convocado para algumas tarefas de cariz oficial, como o acesso a informação médica para acesso a prestações sociais, que devem ser desburocratizadas”.
Convidada a enunciar outras ideias produtivas que nasceram da reunião do Porto, Eunice Carrapiço coloca em primeira linha a noção de que “é preciso continuar a apostar na reforma do CSP, com a generalização – inacabada – do modelo USF, mas com a inexistência de dois patamares (A e B), assegurando a acesso por parte de todas as USF a incentivos de desempenho, não focados na qualidade do ato médico ou de enfermagem – porque essa tem sempre de estar assegurada em todas as unidades – mas sim verdadeiramente sensíveis ao aumento da resolutividade, da carga de trabalho, da acessibilidade e da disponibilidade dos profissionais e à diminuição dos tempos de resposta. Estes incentivos não podem ser encarados como uma componente fixa do vencimento, como o são atualmente”.
A diretora executiva sublinha também a circunstância de se ter falado na necessidade de acelerar a implementação do processo eletrónico único, “um desenvolvimento que é urgente e traz consigo mais valias sobejamente conhecidas”, bem como a importância de internalizar nas unidades dos CSP os meios complementares de diagnóstico (MCDT), algo que “implicará uma reestruturação e reorganização da forma de trabalhar e dos horários do MF, mas que comporta ganhos para o sistema, para os profissionais e para o utente”.
Na perspetiva de Miguel Azevedo, outra das temáticas chave dissecada nesta reunião foi a urgência de reequacionar a maneira como estão interligadas e agem as estruturas que afetam o trabalho diário do MF: “a organização dos CSP deve ser flexibilizada, de forma a munir os MF de maior resolutividade. A gestão dos ACeS, que se quer mais ágil, beneficiará de uma maior autonomia, adequando-se ao contexto geográfico e social onde se insere”. Por outro lado, o médico da USF Arca D`Água acredita que “o atual modelo de pagamento por desempenho aos MF, nas USF Modelo B, deve ser revisto, no sentido de alavancar ganhos contínuos em saúde, espelhando o cariz holístico da especialidade” e que “é necessária uma aposta firme na evolução da carreira profissional do MF, desbloqueando e tornando mais céleres os concursos de progressão”.
Pese embora todos os temas debatidos na reunião se revelem pertinentes, neste momento de encruzilhada e para Raquel Braga existem dois que se destacam de forma clara: “o que pareceu mais emergente para a reorganização dos CSP é a necessidade de redução da lista de utentes do MF – sem que isto prejudique, como é evidente, a assistência à população e portanto mediante a colocação de novos médicos no terreno – e uma readequação do modelo funcional das unidades de saúde. Esta última transformação deve ser feita sem perder os enormes ganhos que o modelo USF representa, mas adequando o figurino a uma realidade diferente, em que novas exigências e possibilidades são postas em cima da mesa e as tarefas são redistribuídas dentro da equipa de saúde”.