Carmen Garcia, enfermeira, criadora do blog «A mãe imperfeita», influencer da Saúde nas redes sociais, autora de vários livros (entre os quais o manual «Os dez mandamentos de uma mãe imperfeita» e o romance «A Anos-Luz») e colunista do Jornal Público é a conferencista inaugural do 39º Encontro Nacional de MGF. Com o surgimento da enorme crise de saúde pública que atravessamos regressou à enfermagem (na sequência de um interregno para se dedicar à família e após onze anos acumulados em meio hospitalar e nos cuidados intensivos), integrou uma estrutura de apoio de retaguarda para utentes Covid-19 nos cuidados de saúde primários do Alentejo, colaborou na vacinação e numa consulta de assistência ao doente respiratório e, agora, participa em brigadas de diagnóstico Covid que se deslocam a lares e escolas, para testagem em massa. Na sua perspetiva, a pandemia veio expor ainda mais uma verdade dos tempos modernos: os profissionais – a título individual – e as instituições de saúde têm de saber comunicar com as pessoas através de todos os meios, inclusive no ciberespaço, sem menosprezar qualquer tipo de veículo de comunicação. De outra forma, correm o risco de não ser ouvidos… ou pior, serão silenciados por vozes menos honestas e rigorosas.
No final de março, quando fizer a conferência inaugural do 39º Encontro Nacional de MGF, falará essencialmente para médicos de família (MF) e internos da especialidade… O que lhe parece que será interessante transmitir a este público, numa fase tão difícil para a nossa sociedade?
Carmen Garcia – Vou, acima de tudo, abordar várias perspetivas pessoais. Primeiro, a de alguém que está a procurar mudar de vida, para tentar conciliar a realidade do SNS com a realidade familiar. Isto dirá muito a quem tem filhos, a pessoas que estão a constituir família e têm filhos pequenos, situação que se agrava quando temos filhos com problemáticas específicas, como é o meu caso, já que um dos meus filhos é surdo profundo. É muito difícil neste momento, com o nível de exigência que nos é pedido e a carga de trabalho que sobre nós recai, sermos bons profissionais e conseguirmos viver ao mesmo tempo com qualidade. Quando juntamos a isto filhos pequenos, com grandes necessidades de apoio, a nossa vida torna-se muito complicada.
Mas irá abordar também outros aspetos da sua experiência pessoal?
Sim, foi-me também dito que seria interessante falar sobre os «dois lados da pandemia». De facto, vivi muito tempo o contexto hospitalar e, depois, entrei no contexto dos cuidados de saúde primários (CSP). No início – porque vinha dos cuidados intensivos, onde as equipas são muito fechadas, todos temos o complexo de «Nosso Senhor» e consideramos que estamos no topo da tecnologia e no Olimpo dos Deuses – julguei que o desafio que me foi colocado nos CSP seria fácil, que o ultrapassaria com uma perna às costas. De repente, vejo-me numa residência universitária sem as mínimas condições para utentes dependentes, com quartos minúsculos que obrigavam as auxiliares a esgueirarem-se de lado entre as camas, forçados a carregar utentes ao colo porque as macas não cabiam nas divisões. Agora, com tranquilidade e distância, consigo dizer que nunca foi tão difícil para mim trabalhar como no período em que estive a trabalhar nos CSP. Passei do Olimpo dos Deuses para um contexto onde os meios são muito poucos e todos os dias aquilo nos pedem muda. Assim, julgo que seria importante falar um pouco sobre esta diferença, entre hospitais e CSP, sobre a forma como às vezes não nos articulamos e da ideia errada que temos uns dos outros.
Nesta fase da sua vida ganhou, então, um renovado apreço pelos profissionais dos CSP?
Ganhei foi um respeito totalmente novo pelos colegas dos CSP! Nunca duvidei da importância dos CSP, até porque se eles acabarem o SNS rebenta. Agora, eu não tinha era uma noção exata de quão difícil era neste país trabalhar em CSP, como estes profissionais são «pau para toda a obra» e tudo se espera deles. Como qualquer profissional de saúde, terá recorrido a estratégias de coping para superar um período tão difícil. Vai falar um pouco sobre como está a conseguir encontrar o seu equilíbrio, nomeadamente através de múltiplas formas de comunicar com o público? É importante que percebamos que a Saúde tem de falar para fora, não podemos continuar a falar apenas uns com os outros. Esta é uma missão à qual nos dedicamos muito pouco e que não fazemos muito bem, de um modo geral. Eu tenho procurado, dentro das minhas limitações, fazer algo neste campo e colocar mensagens importantes lá fora. Uso a minha coluna no jornal Público muitas vezes para atingir tal objetivo, ou a minha presença em programas de televisão, ou nas redes sociais.
Mas essa atividade não a deixa, por vezes, em situações delicadas?
Eu estou muito exposta, é certo, sobretudo nas redes sociais. Para se ter uma noção, a minha página de Facebook tem um alcance médio semanal de 1,5 a 2 milhões de pessoas, o que é muita gente. Assim, é natural que possamos receber ofensas e comentários menos agradáveis, muitas vezes devido a coisas relacionadas com a Saúde. Por exemplo, recentemente partilhei uma mensagem sobre o protocolo de intervenção na abordagem da criança com febre, com conselhos básicos, mensagem essa que deu origem a dezenas de ofensas. Isto é difícil de gerir e gostaria de falar um pouco no Encontro sobre esta parte da minha experiência, enquanto influencer na Saúde.
No presente, existem muitas críticas sobre a alegada forma como o SNS está de costas voltadas para população, sobre a fraca resposta dos serviços aos utentes e os telefones que não são atendidos… seria importante que os profissionais, a título individual, ganhassem competências para que dentro das suas listas e população possam comunicar na dose certa e repor a verdade?
Repare, o grande problema da Direção-Geral da Saúde e das várias classes profissionais durante a pandemia tem sido a comunicação. Comunicamos muito mal para fora, ora porque não nos queremos expor, ora porque entendemos que há coisas que não devem ser ditas em espaço público. Isto conduz a uma situação terrível: as pessoas não percebem o que andamos a fazer todos os dias e a culpa é nossa, porque fazemos muito pouco para passar a mensagem sobre a nossa carga de trabalho! Quando deixamos as Ordens e os sindicatos falarem e abdicamos de o fazer a nível individual, perdemos uma excelente oportunidade de mostrar às pessoas o que realmente valemos e o que temos conquistado. Ou mudamos esta atitude depressa, ou veremos crescer cada vez mais o ódio contra os profissionais de saúde. Enquanto profissionais de saúde, temos de aprender a comunicar, porque quase sempre quem nos representa só aparece na esfera pública a clamar por vencimentos e carreiras e a mensagem única que passa é que somos gananciosos, que fazemos pouco e ainda queremos ganhar mais.
Ou seja, o que dirá aos participantes do Encontro Nacional é que, infelizmente para eles, a juntar a todas as tarefas que já têm em mãos vão ter de se dedicar também a funções de esclarecimento e desenvolver estratégias de comunicação para os utentes?
Eu entendo que esta exigência seja difícil de aceitar, mas o futuro passa por aqui. Os profissionais não podem depender das vias de comunicação das unidades ou das ARS. Enquanto os CSP não conseguirem ter as suas vozes próprias, não aprenderem a falar para fora e não apostarem numa boa comunicação, terão sérias dificuldades em estarem bem inseridos na comunidade. Coloco uma questão: quantos agrupamentos de centros de saúde (ACeS) contam com uma boa assessoria de comunicação, capaz de mostrar o bom trabalho que fazem? Não existe nada que possamos apontar de concreto e é impossível não dizer que a Saúde comunica mal em Portugal. Este é um panorama que temos de transformar e todos nós (médicos, enfermeiros, etc.) somos forçados a pensar a sério sobre a importância de comunicar para fora, não só em termos individuais, mas também ao nível das unidades de saúde familiar (USF), ACeS e ARS. Temos de nos habituar a falar com as comunidades a quem prestamos cuidados e essa é única maneira que temos de elas nos entenderem. Enquanto não não nos dedicarmos a tal tarefa, não vamos ganhar esta batalha.
Mas nem todos os profissionais terão a sua capacidade, inclinação e experiência comunicativa. Como é possível levar à prática essa aproximação dos CSP às populações em todo o território?
Existem comunicadores de excelência no nosso país e não vejo porque não se deva apostar neste tipo de serviços. É comum no nosso sistema de saúde valorizar-se muito aspetos que não mereciam tamanho destaque, porque já existe uma valorização inata associada a eles e, depois, esquecemo-nos de outras coisas que são essenciais. Investir em comunicação é muito importante. Se não existir alguém numa USF, por exemplo, com jeito e vontade para comunicar, então é sempre possível investir numa assessoria de comunicação, contratar alguém capaz de o fazer, porque é urgente que comecemos a mostrar às pessoas o que fazemos numa base diária. Por vezes, somos mal-amados porque não sabemos trazer as pessoas para ao pé de nós. Eu gosto sempre de dar o exemplo de um médico japonês que ficou famoso depois de passar a usar o TikTok. O hospital onde ele trabalha dá-lhe dois dias por semana para fazer exclusivamente a comunicação em saúde, mostrar o que se passa no hospital e realizar atualizações importantes para o público, dispensando-o da prestação de cuidados. Agora, este hospital é um dos mais populares no Japão e um dos que recebe mais doações.
Falou do TikTok e sabemos que esta e outras redes sociais têm muito apelo e muitos seguidores. Mas o que diria aos detratores destes fóruns, que dizem que a Saúde é assunto demasiado sério para cair em redes que são verdadeiros sacos de veneno e agressão?
O meu pai é espanhol e vivi entre os dois países durante um período relevante. Em Espanha, os médicos habituaram-se muito a reproduzir a expressão “agujero negro”, ou seja, que as redes sociais são um buraco negro para a Saúde, que deveríamos distanciar-nos, do ponto vista profissional e ético, desse buraco negro. Porém, o que aconteceu foi que os médicos e os outros profissionais afastaram-se e de seguida o buraco negro engoliu-os a todos. Quando não há ninguém que lute contra a desinformação ela ganha. Vale de muito pouco estar num congresso onde só estão presentes médicos e enfermeiros, sentados a falar de desinformação em Saúde, quando depois nos abstemos de ir combatê-la no local onde estão as pessoas. Por outro lado, é idiota pensar que existem meios de comunicação inferiores quando são esses meios que as pessoas consultam e é nesses fóruns que os negacionistas se concentram. Em suma, os grandes nichos de desinformação formam-se nas redes sociais e é aí que devem ser combatidos. De facto, as redes sociais são um buraco negro de desinformação em Saúde, mas a nossa única possibilidade de contrariar esta tendência e de chegar às pessoas é estarmos presentes nos espaços que estas frequentam. Devo dizer, aliás, que é muito pretensioso nós, profissionais, acharmos que estamos acima desse tipo de comunicação. No momento em que deixarmos de ir aos locais (físicos ou virtuais) onde estão as pessoas, não valerá a pena ir a mais lado nenhum.