Na abertura do 39º Encontro Nacional de MGF, evento que decorre em Aveiro e reúne aproximadamente 900 participantes, as palavras do presidente da APMGF para a tutela foram em simultâneo duras e esclarecedoras relativamente ao sentimento da grande maioria dos profissionais dos cuidados de saúde primários (CSP) no terreno: “estaremos nas unidades de saúde sempre disponíveis para dar o nosso contributo, mas por favor deixem-nos ser médicos de família por inteiro”. Nuno Jacinto acredita que é a hora de inverter o rumo que os CSP e o Serviço Nacional de Saúde estão a levar, antes que seja tarde demais e da desmotivação se passe à desistência total: “o SNS está doente. E está doente porque não sabe valorizar e acarinhar os seus profissionais. Quem o gere trata os médicos de família como funcionários em quem pode delegar mais e mais competências”. Apesar dos tempos serem difíceis – e agravados por vários anos em que o impacto da pandemia se fez sentir – o dirigente da APMGF sublinhou que a Associação não está parada e anunciou várias iniciativas que colocou recentemente em marcha, como o estabelecimento de parcerias para a atribuição de bolsas de investigação (as primeiras das quais serão entregues já no 39º Encontro Nacional), ou um ambicioso plano de formação em que se insere um calendário preenchido de webinars temáticos on-line, que se vêm juntar às inúmeras ações de formação presenciais de cariz nacional ou regional promovidas pela APMGF, as suas delegações e grupos de estudos.
A sessão de abertura ficou igualmente marcada por um forte sentimento de apoio aos refugiados da guerra da Ucrânia e pela análise daquilo que os profissionais de saúde podem fazer para ajudar. A este propósito, Vasco Malta, chefe de missão em Portugal da Organização Internacional das Migrações, a agência das migrações das Nações Unidas, relembrou que o nosso país “está no top 10 das nações que acolheram refugiados”, sendo já “mais de 24 mil as pessoas que receberam proteção temporária”. No domínio da saúde, Vasco Malta garantiu que apesar de estarem assegurados cuidados a estes refugiados no âmbito do SNS, ainda “continuam a surgir relatos de migrantes que sentem dificuldades de acesso, muitas vezes por falta de informação dos técnicos que procedem aos contactos iniciais”. Daryna Lavriv, médica interna de MGF na USF D. Diniz que nasceu na Ucrânia mas vive em Portugal desde os nove anos, tem vindo a acompanhar vários destes refugiados na sua unidade e afirma que “vivem todos os dias com o coração apertado e sob stress constante”. Na sua perspetiva, uma porção muito significativa destas pessoas necessita de apoio psicológico imediato, mas o baixo número de psicólogos disponíveis no SNS dificulta a implementação de uma resposta eficaz. Em mensagem gravada, o bastonário da Ordem dos Médicos (OM) declarou aos participantes sentir-se orgulhoso pela “grande resposta que os médicos estão a dar a esta população refugiada, em linha com aquilo que a OM tinha pedido”. Já sobre o panorama dos CSP em Portugal, o presente e o futuro dos médicos de família, Miguel Guimarães mostrou-se desiludido com os políticos e decisores em saúde: “o governo não tem conseguido fixar os médicos de família no SNS porque teima em não valorizar o trabalho dos profissionais e continua a não investir em melhores condições”.
Profissionais só têm a ganhar com comunicação franca nos novos espaços públicos de debate
Convidada a proferir a conferência inaugural no evento, Carmen Garcia – enfermeira, autora, colunista e influencer na área da saúde (com mais de 250 mil seguidores nas suas páginas) – confessou que tinha uma perceção totalmente distorcida dos CSP antes de trabalhar neste contexto, desconhecendo à partida as dificuldades e exigências crescentes que recaem sobre os profissionais dos CS. Uma imagem errónea que também deverá afetar a população em geral, na sua opinião. Para desmistificar estes conceitos, bem como melhor preparar os portugueses para lidar com a sua saúde e bem-estar, é importante acima de tudo comunicar, mas pelos meios mais adequados. Enquanto alguém que dedicou muito do seu tempo nos últimos anos a comunicar em saúde através de plataformas on-line, Carmen Garcia não tem dúvidas em afirmar que os médicos de família, se quiserem exercer esta sua missão comunicacional com eficácia, têm de abandonar arraigados preconceitos: “é preciso comunicar com as pessoas onde elas se encontram, mesmo que sejam locais onde os profissionais não gostam de ir. Temos de deixar de olhar para estes espaços comunicacionais como buracos negros de informação. De facto, podemos não apreciar os programas televisivos da tarde, ou o TikTok, mas senão comunicarmos nestes fóruns, o que estamos a fazer é abrir um espaço para a desinformação”.
O primeiro dia do 39º Encontro Nacional ofereceu ainda a oportunidade dos participantes tomarem contacto com a história pessoal de vários médicos de família que decidiram dar um rumo diferente às suas carreiras, enveredando pelas mais inesperadas ocupações. Um exemplo claro disto mesmo é corporizado por João Braga Simões, médico de família na USF Terra da Nóbrega, que desde há algum tempo desempenha também funções como vereador na Câmara Municipal de Arcos de Valdevez. Para o médico/político, o extenuante e sobrecarregado quotidiano de muitos colegas, feito de atos repetitivos e por vezes envolto em muita burocracia, fez com que perdessem o foco nas facetas da sua vida que estão para além do consultório e que perdessem “o código criativo”. Por outro lado, a política consome muito tempo, um bem que regra geral escasseia entre os médicos. Todavia, mesmo quando não é possível a um médico de família abraçar um projeto político ativo, João Braga Simões defende que a porta está sempre aberta para a intervenção no espaço público, que mais não seja através da transformação da rotina clínica: “todos nós passamos uma mensagem em tudo o que fazemos, uma mensagem que também é política, no sentido em que transforma. Por exemplo, lançamos mensagens políticas aos nossos utentes quando falamos sobre o que deve ser o papel do doente na gestão da sua saúde”.