Iona Heath: “Os médicos de família estão, no presente, mais isolados do que na fase final do último século”

A conferencista de abertura do 40º Encontro Nacional de MGF, Iona Heath, é uma mulher de muitas missões e experiências, empenhada na clara definição da especialidade de Medicina Geral e Familiar, mas também no combate às injustiças no acesso das populações à saúde, no afrontamento dos grandes lobbies que procuram dominar o setor, na defesa da absoluta igualdade de tratamento aos profissionais de saúde – seja qual for o seu género e origem – ou na reflexão sobre os benefícios e riscos dos sistemas de incentivo ao desempenho médico. Em Vilamoura, a antiga presidente do Royal College of General Practitioners (RCGP) será uma voz que merece ser ouvida, pela perspicácia na avaliação do passado, mas sobretudo pelas dicas que poderá dar sobre os caminhos futuros da MGF.

Teve uma longa carreira como clínica geral/médica de família no Reino Unido, a que acresce a presença em lugares de liderança em organizações com peso decisório nas políticas de saúde e na prestação de cuidados. É desde sempre, também, uma defensora da construção de redes colaborativas internacionais na Medicina Familiar. Acredita que os médicos de família estão menos isolados no seu trabalho hoje, comparativamente com o que se passava no último quartel do século XX?

Iona Heath – Embora grande parte de nós trabalhe hoje no seio de equipas mais alargadas, julgo que os médicos de família estão, no presente, mais isolados do que na fase final do último século. Verificou-se uma erosão gradual da continuidade de cuidados no âmbito destas extensas equipas e no exato momento em que os poderosos benefícios da continuidade de cuidados estavam a ser consolidados, a natureza essencial e as competências da Medicina Familiar tornam-se menos compreendidas, dentro dos próprios cuidados primários de saúde, mas também ao nível de quem presta cuidados muito especializados e da sociedade em geral.

Uma das suas grandes paixões, em paralelo com a Medicina Familiar, abarca os cuidados paliativos e em fim de vida

Devo começar por dizer o quanto admiro o livro «Agora e na Hora da Nossa Morte», de Susana Moreira Marques. Eu própria lancei um livro («Matters of Life and Death – Key Writings»), apesar de tudo de índole muito diferente, sobre o cuidar daqueles que se preparam para morrer, já publicado em inglês, italiano, castelhano, catalão e galaico. Embora esteja claramente suportado na minha experiência britânica, tem sido muito bem recebido nas diversas traduções e contextos.

É ainda conhecida por, ao longo dos anos, não esconder as suas opiniões acerca da influência nefasta de alguns interesses económicos que interagem com a classe médica e as organizações da saúde, de um modo mais abrangente. Parece-lhe que este problema tem vindo a piorar, ou as gerações mais jovens de médicos estão melhor preparadas para lidar com tal desafio?

Sim, de facto até publiquei um ensaio sobre estas questões, que foi disponibilizado apenas em italiano («Contro il mercato della salute», ou «Opium of the Masses», título original em inglês). Considero que o problema tem vindo a piorar e temo, aliás, que as gerações mais jovens estejam ainda pior capacitadas para lidar com tamanhas dificuldades, pelo menos no Reino Unido, que muito pouco destes assuntos surge integrado na formação médica.

As mulheres representam a maioria dos médicos em Portugal e a sua percentagem é especialmente elevada na Medicina Familiar, com um número cada vez mais expressivo de médicas internas a entrar na formação especializada de MGF, a cada ano que passa. Que consequências (negativas ou positivas) tem esta presença feminina amplificada na Medicina Familiar?

Continuamos a viver num mundo sexista e, à medida que a força de trabalho médica e os recursos humanos da Medicina Familiar, em especial, se compõem de mais mulheres, aumentam as probabilidades de tal força de trabalho ficar sujeita a condições laborais de abuso e exploração. Mas comecemos pela origem. É essencial que as pessoas responsáveis pela seleção e recrutamento de candidatos às escolas médicas garantam que todos os setores da sociedade estão representados de maneira proporcional e que homens e mulheres estão representados nas instituições de ensino médico de modo equilibrado. A jusante, será fundamental assegurar que as mulheres recebem oportunidades iguais em cada um dos domínios da Medicina e que, em acréscimo, a Medicina Familiar permanece compensadora e desafiante também para os homens.

Em Portugal, o acesso a um médico de família e a uma equipa de saúde familiar para todos os cidadãos tem sido encarado como um objetivo político de fundo, infelizmente sem sucesso integral. Em anos recentes, o número de pessoas sem médico de família atribuído tem inclusive crescido, em determinadas áreas metropolitanas. Vários governos têm procurado resolver o problema com recurso quer a sistemas de incentivo ao desempenho, quer a uma maior autonomização das equipas de saúdeQual é a sua perspetiva sobre estas estratégias, desenhadas para melhorar os índices de acessibilidade?

A experiência britânica diz-nos que quanto mais o governo interfere na Medicina Familiar e Cuidados Primários, por via de metas clínicas mal pensadas, maiores são os custos que pagamos ao nível do tempo disponível para os doentes – e em particular do tempo para os ouvir – e menos disponibilidade passamos a ter para criatividade e inovação na nossa prática clínica. Tal resulta numa mais rápida desmoralização da força de trabalho e em maiores dificuldades para atrair jovens médicos que desejem entrar na Medicina Familiar. Neste contexto, a proposta portuguesa de um maior grau de autonomia local na prática clínica soa muito promissora e gostaria, com toda a franqueza, de saber mais sobre ela.

 

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