Encontro Nacional termina com apelos à valorização do MF e à importância de escutar os doentes

Encerrou-se mais um Encontro Nacional de MGF, neste caso o quadragésimo, que assinalou também as quatro décadas de existência da Associação celebradas neste ano de 2023. Tratou-se de uma iniciativa que mostrou a pujança da especialidade, com mais de mil inscritos e dezenas de oficinas e sessões extremamente concorridas por várias gerações de médicos de família (MF).

Na cerimónia que fechou o Encontro Nacional, o presidente da APMGF, Nuno Jacinto, sublinhou que este “foi o Encontro em que as salas de Vilamoura se voltaram a encher de MF” e mostrou-se muito feliz por “estar entre amigos” e por o Encontro se ter revelado “vivo, cheio e vibrante”. A ocasião foi bem-afortunada, mas não esconde os momentos difíceis que os MF e o SNS atravessam. A este propósito, o presidente honorário da APMGF, Mário Moura, garante que embora “a bazuca permita construir 150 novos centros de saúde (CS)”, até agora não ouviu “ninguém a colocar o dedo na ferida. O MF tem de ter tempo e dar tempo ao doente para que este possa falar”. O decano da MGF terminou a sua intervenção apelando a que “a APMGF lute pela especialidade” e a todos os colegas deixou o repto: “ouçam, por favor, os vossos doentes”.

“Os médicos também são humanos e precisam que se cuide deles”

O recém-eleito bastonário da Ordem dos Médicos (OM), Carlos Cortes, agradeceu aos MF por “todos os dias serem a cara da Medicina portuguesa”, acrescentando todavia que um obrigado não chega, que é necessário “mostrar respeito pela MGF, valorizar os cuidados de saúde primários (CSP) e dar condições de trabalho aos MF para acompanharem os seus utentes”. O dirigente da OM lembrou ainda que “é urgente reformular todo o processo administrativo dos CSP, desburocratizar, descomplicar, já que melhorando a informatização e os processos podemos dar tempo aos médicos para verem os seus doentes”. Carlos Cortes mostrou-se igualmente apreensivo pelas consequências que a pandemia, o seu rescaldo e todas as dificuldades subsequentes tiveram sobre a saúde (em particular a mental) dos profissionais médicos: “devemos preocupar-nos com a saúde dos médicos, até porque estamos a atravessar um momento muito complicado. Foram muitos anos de intensa pressão sobre os médicos, a que se seguiu uma crise económica (com enorme impacto na saúde das populações e acesso aos cuidados), a pandemia e agora outra situação difícil, uma crise bélica dentro da Europa, que afeta a sociedade os cuidados de saúde. Ninguém é de ferro… os médicos também são humanos e precisam que se cuide deles, porque também sofrem de problemas de saúde mental, como o burnout, caracterizado pela exaustão emocional e as suas outras dimensões”. Por último, o bastonário apelou à tutela que seja “sensível e ouça os médicos, os MF e os CSP”, com vista “a revigorar o SNS”.

Representando precisamente a tutela no Encontro Nacional esteve Ricardo Mestre, secretário de Estado de Saúde, que além de aflorar outras matérias relevantes para o quotidiano dos MF portugueses, procurou descansar a audiência no que respeita à incerteza que afeta as carreiras médicas e o processo de negociação das mesmas em curso: “estamos muito empenhados na condução destas negociações, que deverão decorrer até ao final do presente trimestre. A agenda tem prevista a melhoria das grelhas salariais, a regulamentação da dedicação plena para que os profissionais se possam dedicar mais ao SNS e, ainda, questões relacionadas com a organização do trabalho, contexto no qual a constituição das listas dos MF será um dos pontos centrais”. O governante assegurou que o Ministério da Saúde não tem qualquer intenção de “aumentar as listas de utentes dos MF, mas antes o objetivo de qualificar a constituição dessas listas para que elas estejam dimensionadas em função das necessidades das pessoas e da carga de trabalho para responder a tais necessidades”. Ricardo Mestre explicou também que o governo deseja ter “mais unidades de saúde familiar (USF)” e atingir a meta de “no final desta legislatura conseguir que 80% da população portuguesa esteja coberta pelos serviços de uma USF. Assumimos já, inclusive, o compromisso público de até ao final do primeiro semestre deste ano revermos o modelo de incentivos das USF em modelo B, no sentido de contarmos com incentivos mais ajustados aos desafios de hoje, que valorize mais o acesso e a eficiência da prestação de cuidados e nos permita universalizar as USF”.

O escritor como “médico sem carta e sem licença”

Convidado de honra do Encontro Nacional, o escritor Mia Couto falou de coração aberto aos MF portugueses sobre a «doença de não ser ninguém», o tópico da sua conferência, matizando o discurso com muitas referências da sua vida pessoal, um trajeto que serpenteia entre a ciência, as artes, a imaginação, a memória dos presentes e ausentes e a procura de estórias. Começou por explicitar as diferenças entre a Medicina ocidentalizada e as formas de tratar e curar que vigoram em muitos países africanos, como Moçambique, bem como as diferentes conceções sobre a saúde e doença, algo que deve visto com naturalidade e interesse: “a função de um médico na tradição ocidental é tratar o doente, mas em Moçambique o que a terapeuta tradicional faz é colocar em diálogo as forças invisíveis que entraram em desarmonia, porque a desarmonia é a razão da doença”.

Outrora estudante de Medicina, Mia Couto tinha por hábito visitar um hospital psiquiátrico nos arredores de Maputo e ali lhe foi dito por um psiquiatra que nunca poderia ser seu colega porque para o fazer tinha de ser como um Stradivarius, ao mesmo tempo forte e sensível, sendo que apenas a sensibilidade lhe assentava bem. “Devia ter-lhe dito que a sensibilidade é uma força, que estava enganado. Parece-me, pois, que a ideia que subjaz à criação do MF é a de que o hospital não oferece essa empatia como força diretriz, não é uma casa de cura, é uma espécie de asilo. E aquele asilo, em particular, era na altura uma prisão”.

O autor moçambicano explicou que sente a literatura também como algo de terapêutico para quem escreve e para quem lê, assumindo-se como um género de “médico sem carta e sem licença”, uma vocação “que é cumprida por todos os escritores. De facto, se são escritores, são terapeutas, nem que seja para se curarem a si mesmos”. Mia Couto deixou, por fim, uma nota de saudação e agradecimento aos MF por “restituírem este sentimento de sermos gente por pertencermos a uma família”.

 

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