MF são muito valorizados pela comunidade médica e sociedade portuguesa, mas pouco respeitados por quem gere e governa

“Os médicos de família (MF) gostam da sua especialidade e julgo que cada vez existe mais valorização inter-pares da mesma, bem como valorização na comunidade relativamente ao papel do MF. O que não existe é respeito por parte de quem nos orienta, tutela e governa. Ou seja, não é que não queiramos hoje ser MF, o que recusamos é ser MF nestas condições”, afirmou o presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF), Nuno Jacinto, no decurso do debate «MGF no Centro da Saúde», organizado pela Secção Regional do Sul da Ordem dos Médicos (OM) durante as comemorações oficiais do Dia Mundial do Médico de Família. Nuno Jacinto ressalvou ainda a circunstância de o Serviço Nacional de Saúde (SNS) “ter muitas dificuldades em dar aos profissionais a possibilidade de estes conciliarem a vida profissional com a vida pessoal, a investigação ou a docência, algo que é muito importante sobretudo para os colegas mais novos”. Ao elencar os principais problemas que os MF enfrentam em 2023, Nuno Jacinto aludiu à importância de assegurar “uma remuneração digna, para que nos sintamos acarinhados no local onde trabalhamos”, à “revitalização da carreira médica no âmbito do SNS”, bem como à necessidade de os profissionais contarem com “flexibilidade de horários (algo que existe no setor privado) e autonomia nas equipas” e ao absoluto imperativo de cortar a direito na burocracia que sufoca o quotidiano dos MF. Por outro lado, o presidente da APMGF frisou que ao nível organizacional os MF teriam a vida facilitada se fosse revisto o modelo B das USF, “que trouxe maior atratividade aos CSP, com melhores condições remuneratórias, mas que leva 15 anos e precisa de uma atualização”, além de ser quase impossível de implementar em alguns territórios . A este propósito, Nuno Jacinto anunciou que a APMGF irá lançar a 27 de maio, no seu 40º aniversário, o livro «Um Novo Futuro para a Medicina Geral e Familiar», onde proporá três patamares de prática clínica para os MF, um patamar básico, um intermédio à qual os colegas poderão aceder cumprindo não só uma carteira básica mas igualmente algumas atividades suplementares, por exemplo ao nível da vigilância de grupos de risco e vulneráveis e, por último, “um patamar mais elevado, avaliado por um sistema de qualidade exigente, que permitisse maior desenvolvimento das equipas e com incentivos quer individuais, quer de equipa”.

Na mesma sessão, o presidente do Colégio de MGF da OM, Paulo Santos, sublinhou o facto de o contexto vivido nos cuidados de saúde primários se agravar de dia para dia, com implicações que ninguém pode prever com rigor: “vimos, há poucas semanas atrás, imagens na televisão de utentes à porta de um centro de saúde para quem, pasme-se, trouxeram cadeiras de forma a que ficassem sentados no exterior à espera. Face a isto, temos de perceber que há algo de profundamente errado neste nosso SNS”. E para corrigir o que está errado são necessários, acima de tudo, recursos qualificados, algo que a tutela não tem conseguido garantir nos últimos tempos, elucida Paulo Santos: “tivemos 578 internos este ano a entrar na nossa especialidade e não conseguimos que esses colegas fiquem no SNS, que encontrem condições de trabalho confortáveis e condignas que os atraiam, profissionais que entre um centro de saúde e um hospital privado que distam 300 metros entre si acabam por escolher o hospital privado, porque o centro de saúde não lhes interessa”. Na ótica do presidente do Colégio de MGF da OM, existe também “um elefante na sala que não podemos ignorar; a questão financeira. Temos vergonha de dizer que os médicos ganham mal, mas os médicos efetivamente ganham mal. Para compensar este défice, acabamos por fazer horas extraordinárias ou aceitamos um conjunto de indicadores de desempenho que se fazem refletir no pagamento da nossa remuneração mas, por vezes, muito pouco na qualidade dos cuidados prestados”.

Mas serão os obstáculos com que se confrontam os MF portugueses singulares, ou encontram paralelo lá fora? De acordo com o presidente da Union Européenne des Médecins Omnipraticiens/Médecins de Famille (UEMO), Tiago Villanueva, “todos os MF europeus queixam-se dos mesmos problemas, de uma forma geral, embora se identifiquem grandes diferenças em termos de satisfação profissional. À cabeça, a principal queixa é a falta de recursos humanos e a incapacidade de atrair e reter MF, a que se junta o reduzido financiamento para os CSP, a baixa motivação, a ausência de respeito por parte dos media e dos doentes, a carga do trabalho burocrático e administrativo, ou as dificuldades de aceder aos cuidados de saúde secundários. Quando se olha para a satisfação profissional (através do maior estudo feito até hoje para avaliar a a satisfação dos MF europeus) percebemos que Portugal não está assim tão mal classificado, ficando no terceiro quartil dos países europeus. O país com pior classificação é a Espanha, onde se verifica uma enorme emigração médica, em grande medida originada pela precariedade laboral e por outros fatores, como o reduzido tempo de consulta e a elevada pressão assistencial. Já o país com melhores índices de satisfação entre os MF é a Dinamarca”.

João Sequeira Carlos, diretor do Serviço de Medicina Geral e Familiar do Hospital da Luz Lisboa, abordou no debate a interessante questão do peso crescente que o setor privado pode assumir na formação e capacitação dos médicos de família portugueses: “vejo como completamente possível e desejável a realização do internato de MGF ao nível de serviços de MGF no setor privado, embora esses serviços estejam integrados num hospital, algo que é à partida contra-natura mas que acaba por ser um cenário para o qual temos pensar novas formas de prestar cuidados de saúde primários e de exercer a nossa especialidade (…) A dificuldade de tentar enquadrar um programa de internato de MGF no setor privado provavelmente existe hoje porque estamos a pensar no internato tal como ele é no presente, no perfil de competências que vigora e nas necessidades do SNS e dos seus centros de saúde atuais. Se pensarmos um pouco mais além e no perfil de competências que vai ser necessário no futuro, que de forma vertiginosa se vai impor, torna-se forçoso pensar fora da caixa. Ainda assim – e apesar do ritmo avassalador do desenvolvimento tecnológico e da transição digital – continuo a acreditar que o especialista em MGF será sempre um médico indispensável e que teremos de apostar na relação com o nosso doente, uma característica do MF que não podemos perder”.

Ao contrário do que se passa em muitas unidades do SNS, João Sequeira Carlos está convencido de que na maioria das estruturas do setor privado os MF trabalham com motivação: “há todo o respeito e confiança no trabalho que estamos a desenvolver e na nossa especialidade e, como tal, o que devolvemos à organização é respeito e confiança a duplicar ou a triplicar, até porque estamos a ajudar os nossos doentes com boas condições técnicas, um bom acesso e a solução real dos seus problemas de saúde. Não encontro desencanto entre os colegas que trabalham no setor privado, muito pelo contrário”.

Leia Também

IA na gestão das doenças respiratórias e hesitação vacinal em destaque nas 10ªs Jornadas do GRESP

Inscreva-se no Curso de POCUS em formato b-learning e conquiste maior autonomia profissional!

No Dia Internacional do Idoso assume especial importância o reforço de cuidados e sistemas de suporte

Recentes