Não é pioneiro ou único no país, mas o programa de atração e fixação de médicos de família (MF) desenvolvido pela Câmara Municipal de Reguengos de Monsaraz, que oferece aos profissionais que se queiram juntar à Unidade de Saúde Familiar (USF) Remo e ajudá-la a evoluir para o modelo B um incentivo financeiro mensal de mil euros – até à transição organizacional – para além de muitos outros benefícios (ao nível habitacional, de isenções de taxas e impostos, acesso gratuito a infraestruturas e serviços lúdicos e culturais, etc.), mostra a vontade do poder local não ficar indiferente, enquanto a saúde das populações é exposta aos riscos de um SNS que não chega a todo o lado. Para a presidente social-democrata da autarquia de Reguengos de Monsaraz, Marta Prates, é evidente que vale a pena pensar fora da caixa e investir na saúde, porque “não deve haver nada que angustie mais as pessoas do que perceberem que podem ficar doentes e não ter um médico para as apoiar”.
Como surgiu este programa de incentivos para MF em Reguengos de Monsaraz? Nasceu de uma vontade da Câmara Municipal, da USF Remo, de uma convergência de interesses?
Marta Prates – A questão dos MF é muito complicada e transversal a todo o país e a USF Remo não é exceção. Infelizmente, os reguengueses encontram uma grande dificuldade no acesso a cuidados de saúde, porque não há médicos em número suficiente. Temos uma população muito envelhecida, num concelho do interior com menos de 10 mil habitantes e muitas pessoas a fugirem para as grandes cidades, sendo que uma das razões pelas quais fogem é pelo facto de não terwm acesso ao básico, sendo que o básico passa também, como é óbvio, pela saúde. Desde há muito tempo que temos tentado perceber como podemos atrair e fixar médicos no interior do Alentejo e, mais especificamente, em Reguengos de Monsaraz. Ora um dos problemas que salta à vista é a circunstância de a nossa USF trabalhar em modelo A, algo que é pouco atrativo para os médicos ao nível salarial, a que se junta a localização da unidade, no interior do Alentejo. Sentimos, pois, que era preciso algo mais para trazer até nós estes profissionais de que tanto precisamos.
Mas nunca surgiu um movimento dos próprios profissionais da USF no sentido de transitarem para o modelo B?
Há algum tempo, antes deste executivo tomar posse, houve uma tentativa de o fazer, que acabou por cair por terra. Tal aconteceu porque se verificava uma situação de «pescadinha de rabo na boca»: tem de existir uma equipa que cumpra objetivos para se atingir o modelo B, mas como nunca se atingem os objetivos não se chega ao modelo B e sem modelo B, não há atratividade para constituir uma equipa e não saímos desta roda! Assim sendo, entendemos desde cedo que esta variável do modelo B era essencial. Já existiam outros incentivos, como as casas de função, todavia tornou-se fácil para nós perceber que teria de ser oferecido algo além disto e decidimos forcar-nos em maneiras de dar volta a esta situação.
Em abril, tivemos uma visita do Senhor Ministro da Saúde e em reunião na autarquia com ele, a Presidente da ARS do Alentejo e a Diretora Clínica do Agrupamento de Centros de Saúde (ACeS) Alentejo Central, assumiu-se o compromisso de que a Câmara Municipal tentaria robustecer o seu programa de incentivos, que o Ministério da Saúde (MS) se comprometeria em acelerar o processo e agilizar o que fosse necessário para uma passagem o mais rápida possível ao modelo B e o ACeS e a ARS trabalhariam para garantir algumas mobilidades. Depois de o Senhor Ministro se ir embora, reuni com a Divisão Financeira e identificámos condições para avançar com um programa de apoio e constituir uma task force que facilitasse a transformação da USF Remo numa unidade em modelo B.
Mas que género de apoios contém, no fundo, o programa de fixação de MF?
Os apoios são de diversa ordem, mas o mais importante para esta task force – e que tem vindo desde já a atrair muitos interessados – é aquele que nos permite colmatar em certa medida a diferença remuneratória entre o modelo A e o B, através de um valor pecuniário de mil euros mensais, até um limite de sete médicos. Trata-se de um esforço significativo da parte do município, contudo sempre considerámos que o dinheiro do orçamento municipal é das pessoas que aqui vivem e que é nosso dever devolvê-lo da melhor maneira possível, através de serviços que as pessoas valorizem. Aliás, em todo o percurso do projeto sentimos que temos o suporte não só da população, como das forças partidárias da oposição no Executivo e na Assembleia Municipal para a criação deste pacote de incentivos. Obviamente que o incentivo pecuniário de mil euros é uma forma de atrair os profissionais, mas depois é preciso algo que ajude a fixar as pessoas, para não corremos o risco de chegarmos ao fim do período de apoio remuneratório e os profissionais acabarem por abandonar a unidade. Assim, para além dos mil euros que estamos disponíveis para pagar aos médicos de família até a USF Remo transitar para o modelo B, oferecemos, ad aeternum se necessário, um subsídio de deslocação de 250 euros mensais, para quem não quiser ficar na casa de função e um apoio adicional de vencimento no valor de 500 euros.
Como está a USF Remo, em termos de recursos médicos, no presente?
Neste momento, estamos numa situação miserável. Temos dois médicos na equipa, a que se juntam mais três médicos aposentados que são contratados para vir fazer algumas horas semanais na unidade. Imagine-se o que é um concelho com 9700 pessoas com apenas dois médicos… temos, na realidade, mais de metade da população a descoberto. Se tivéssemos os sete médicos projetados para a USF Remo a situação seria diferente e a população estaria integralmente coberta, para além de podermos contar com uma consulta aberta a funcionar melhor e disponível aos fins-de-semana. Isto é, com os sete MF previstos resolveríamos o nosso problema, que é grave para Reguengos, onde vive uma população envelhecida e com ausência de opções. É preciso notar que se para algumas pessoas é fácil pegar num carro e ir a Évora, muitas não têm transporte, para além de que irão contribuir para entupir o Hospital de Évora, já a rebentar pelas costuras.
E no que respeita às instalações atuais da USF Remo, como as classificaria?
A conjuntura é muito boa. O centro de saúde tem já alguns anos, no entanto decorreu uma obra de requalificação abrangente custeada pela ARS do Alentejo, que terminou há poucos meses atrás. Esta intervenção deixou a unidade com condições de trabalho perfeitas. Todas as salas estão climatizadas, o mobiliário é novo e foi instalada uma sala de Imagiologia, que está pronta a estrear e aguarda apenas pela conclusão do concurso para o técnico. Existe também o compromisso de recuperar a realização de análises clínicas dentro da unidade, algo que acontecia já antes da pandemia. Resumindo, considero que estamos a falar de um centro de saúde muito bem apetrechado em termos de condições de trabalho.
Na vossa ótica, com uma unidade de saúde estável, é possível parar a desertificação populacional e inclusive chamar mais pessoas para viverem neste concelho do interior?
Sim, para nós resulta claro que um concelho como o nosso só pode ser atrativo se for dinâmico em todos os setores. É claro que estamos a trabalhar em condições para fixar jovens famílias e investimento, contudo as pessoas (e aqui incluo os muito falados nómadas digitais, que se sentiriam atraídos a trabalhar nesta planície imensa, tão bonita) têm de dispor de um conjunto de serviços que corresponda às suas necessidades, para virem até Reguengos, sendo a saúde uma componente fundamental nesse contexto. Assim, temos vindo a desenvolver grandes esforços para reforçar infraestruturas e redes digitais, a intensificar a oferta cultural, entre outros aspetos, mas nunca poderíamos descurar a saúde. De facto, ninguém pega na sua família e se desloca para um local onde sabe que não existe um médico para tratar dos seus. Não deve haver nada que angustie mais as pessoas do que perceberem que podem ficar doentes e não ter um médico para as apoiar.
Em todo este processo de dinamização da USF Remo e atração de mais profissionais de saúde para o concelho, a autarquia acaba por ser a força motriz… Foram forçados a fazê-lo, a tomar a liderança?
Sentimos que estamos a substituir o poder central, mas também sentimos que tal não pode ser um entrave ao processo. Se não tínhamos que ser nós a fazê-lo, a verdade é que não havendo iniciativa, capacidade ou vontade de outros, temos de ser nós a avançar, até porque não podemos ficar de braços cruzados, desresponsabilizando-nos enquanto vemos um problema destes a crescer e as queixas diárias das pessoas a avolumarem-se. Se o poder central não faz, têm de ser as autarquias a avançar. No nosso caso, temos um orçamento municipal escasso para gerir e uma dívida muito pesada para pagar que herdámos, mas o que nos sobra deve ser canalizado para dar às pessoas aquilo de que elas necessitam. Estamos, na realidade, muito empenhados em resolver esta questão dos serviços de saúde, até porque como já mencionei, este é um dos setores que quando desequilibrado nos impede de atrair mais população para o concelho e agrava o fluxo migratório para as grandes cidades. Refira-se, a propósito, que o concelho de Reguengos de Monsaraz perdeu 11% da sua população entre os dois últimos censos.
Ainda a propósito da intervenção das autarquias na saúde, muito se tem falado nos últimos anos sobre o processo de delegação de competências no poder local e dos riscos de uma «municipalização» excessiva do setor. Como avalia esta problemática, aos olhos da vossa experiência?
Não encaro esta questão com receio e julgo, até, que é o poder local que tem o absoluto conhecimento do que se passa no terreno e das necessidades sentidas. Todavia, há que perceber que todas as delegações de competências efetivadas devem vir acompanhadas do respetivo envelope financeiro, de forma a que as câmaras municipais não fiquem ainda mais prejudicadas ao nível orçamental. Assinámos o auto de transferência de competências da administração central na área da saúde recentemente (entrou em vigor a 1 de abril deste ano), pelo que não tenho ainda uma noção exata das implicações. Ainda assim, posso dizer que no domínio da educação a nossa autarquia já vai com um défice de 200 mil euros no orçamento, o que significa que aquilo que nos pagaram não chegou! Agora, se as contas foram bem feitas e se existir o entrosamento ideal entre a ARS do Alentejo, o ACeS, o MS e a Câmara Municipal de Reguengos, vejo com muito bons olhos o aprofundamento das nossas competências na área da saúde, uma vez que as necessidades efetivas das pessoas perdem-se nos corredores do poder central. Não acredito – por melhores que sejam os técnicos em Lisboa – que percebam em detalhe o que se passa aqui, se nunca vieram a Reguengos de Monsaraz ou a freguesias minúsculas como Campinho e São Marcos do Campo. Podem ter uma noção abstrata dos números e das carências, mas não sabem que existem pessoas às 4 da manhã à porta de uma extensão de saúde, ou que há utentes que esperam meses para um médico para avaliar um exame ou análises clínicas, sem a possibilidade de ajustar medicações ou tomar outra medida preventiva, simplesmente porque os profissionais de saúde são poucos e não conseguem dar a devida resposta. Já nós, temos a perceção rigorosa do que se passa no terreno, pelo que é lógico que certas competências passem para o poder local, desde que haja a essencial articulação com a administração central e as verbas sejam ajustadas. De outro modo, os orçamentos municipais (que já são bem apertados) vão enfrentar mais dificuldades e quando as coisas começarem a faltar ou a correr mal vão tentar que os municípios vistam a pele de lobo, algo que não merecemos, na medida em que o nosso único objetivo é o de resolver os problemas das pessoas.
Para os profissionais de saúde que considerem o vosso projeto interessante e possam ter interesse em deslocar-se para Reguengos, mas não conheçam bem o território, como o descreveria?
Antes de mais, é preciso desmistificar a localização e a interioridade. Reguengos de Monsaraz está a hora e meia de Lisboa e a trinta minutos de Évora, uma capital de distrito que é património mundial da humanidade, com muito para oferecer. Com isto quero dizer que não estamos a falar de um interior que assuste, com muita montanha e a necessidade de fazer muitos quilómetros para chegar a um local mais povoado e é fácil dar um salto à capital, para jantar ou ver uma peça de teatro, por exemplo.
Por outro lado, o concelho de Reguengos possui como sede do município uma vila medieval lindíssima, é muito rico do ponto de vista patrimonial e com grande dinâmica económica, em torno sobretudo da agricultura, do setor do vinho e do turismo. Somos uma população que gosta de acolher e de ajudar quem vem de fora. Do ponto de vista habitacional, embora tenhamos os mesmos problemas de escassez de oferta que enfrenta o resto do país, decidimos não ficar estáticos e já nos movimentámos no sentido de constituir uma bolsa de casas que a autarquia possa alugar com custos controlados, o que significa que os médicos que desejem fixar-se aqui não ficarão, de certeza absoluta, sem habitação condigna. Em acréscimo, estamos a desenvolver em continuidade um programa cultural muito interessante, com concertos, peças de teatro, cinema e exposições. Neste campo, estamos a crescer de forma significativa e seremos sem dúvida a breve trecho um dos melhores concelhos do Alentejo Central em termos culturais. Os equipamentos (auditório, piscina e picadeiro municipais, pavilhões desportivos, circuito de manutenção, etc.) são modernos e excelentes, o que significa que ninguém deve ter medo de vir e não ter nada para fazer, durante o seu tempo livre. Depois, é fundamental não esquecer que Reguengos de Monsaraz é um local onde se vive com muita segurança.