Foi com «A espuma dos dias» que o multifacetado escritor, músico, poeta, diretor musical e inventor Boris Vian ganhou notoriedade, o que não deixa de representar uma interessante ironia. De facto, uma banal (ou aparentemente banal) crónica de amor – ainda que entre coberta pelo véu do surrealismo/onirismo – colocou na história da literatura e das artes um homem tudo menos simples. Nascido em Ville d’Avray, no arranque da terceira década do século XX, o escritor viveu apenas 39 anos, mas com feroz intensidade. Durante esse curto período brotaram da sua imaginação dez romances, sessenta contos, três livros de poesia e dez peças de teatro. Uma produção literária e dramatúrgica que daria também origem a vários projetos cinematográficos, adaptados a partir de obras suas. Pelo meio, Vian encontrava ainda tempo para se dedicar à música, com particular amor confesso pelo jazz.
O romance «A espuma dos dias», ou «L’Écume de jours», no original, publicado em 1947, dará com certeza muito que falar e maravilhar na próxima sessão do Clube de Leitura APMGF, programada para o dia 5 de julho, pelas 21h00 (nova data). A participação no Clube de Leitura está sujeita a inscrição prévia, é gratuita para os sócios da APMGF e tem um custo de 35 euros para não sócios (valor que permite participar no ciclo integral). No final do ciclo, todos os participantes do Clube de Leitura que tenham assistido às sessões em direto receberão um diploma de participação entregue pela APMGF.
A obra selecionada para debate no Clube de Leitura narra a vida de seis amigos, Colin, Chick, Chloé, Alise, Nicolas e Isis, que vivem em Paris num ambiente artístico inebriante e matizado pelo existencialismo dos anos 50. Tudo parece fluir sem dilemas até que o jovem Colin, burguês rico e despreocupado, se vê embrenhado numa luta sem quartel para salvar a amada Chloé, afligida por uma estranha doença: um nenúfar cresce-lhe no pulmão e ameaça a sua existência. O único tratamento que atrasa a progressão do mal implica rodear sempre a paciente de outras flores, tarefa que delapida, a pouco e pouco, a fortuna de Colin, para além de o mergulhar numa profunda angústia, face à incapacidade de fintar o inevitável. Os demais personagens também sofrem quedas em espiral à medida que a ação avança, com destaque para Chick, grande amigo de Colin cuja obsessão por tudo que está relacionado com o fictício filósofo Jean Sol Partre (jogo de palavras que nos remete para o verdadeiro Jean-Paul Sartre) empurra a namorada Alise para a indiferença e, mais tarde, para a loucura homicida.
Tiago Mendes, médico de família na USF Matriz (Arraiolos) e dinamizador da sessão, escolheu deste livro num gesto quase instintivo e muito pessoal: “a memória deste livro evoca-me um momento importante no meu percurso formativo (li-o durante um estágio de Cuidados Paliativos que frequentei em Paris, em 2008). Sendo a narrativa, com todas as suas divagações surreais, centrada num processo de fim de vida, marcou-me bastante nesse contexto clínico que então vivenciava, e como tal achei que poderia ser uma obra interessante para partilhar no Clube de Leitura. Esta obra retrata de uma forma quase desconcertante os diferentes significados e simbolismos que a doença, a incapacidade e a perspectiva de fim de vida adquirem para alguém confrontado com a fatalidade de uma doença incurável. Todos sabemos quão importante pode ser, em consulta, possibilitar a exploração dessas metáforas para entender os motivos subjacentes ao sofrimento das pessoas, por mais absurdas que essas possam parecer numa perspectiva médica”.
Embora admita que a abordagem e o estilo usados pelo autor não sejam os mais comuns, Tiago Mendes defende que esta é uma obra com as condições ideais para chegar a cada vez mais leitores nos tempos que correm, desde que estes se deixem levar sem preconceitos pela ilusão: “sendo importante enquadrar o livro na época em que foi escrito (final dos anos 40 do século XX, em pleno pós-guerra, com a euforia fantasista e pós-modernista que o caracteriza), não creio que seja uma obra para alguns, até pela popularidade que tem conservado em diferentes gerações que sucederam à da sua publicação. É verdade, porém, que a sua componente estética e de estilo possam ser consideradas nada convencionais, o que para muitos leitores pode constituir uma barreira nem sempre fácil de ultrapassar. Deixando-nos levar pela sua vertente surreal e iconoclasta para que nos transporta, diria que nos permite experienciar um universo quase onírico, riquíssimo de imagens e sensações por vezes desconcertantes outras comoventes, e que para mim constituiu sem dúvida uma leitura inesquecível”.
O dinamizador da próxima sessão do Clube de Leitura da APMGF relembra ainda que o personagem principal (Colin) “aparenta ser um auto-retrato/caricatura literários do autor (Boris Vian), boémio, futurista, anárquico. É fascinante o contraste que a obra confere entre o ritmo frenético, musical que acompanha a sua primeira parte e o início da história amorosa com Chloé, com a sombra que «o nenúfar do pulmão» vai introduzindo, de forma paulatina mas implacável, nessa atmosfera luminosa inicial. Entre o absurdo e a recusa perante esse mal invasor, os personagens vão tentando, em vão, permanecer na luz. E o que fica para nós é a beleza do rasto de folhas caducas que eles vão deixando, como na canção de Yves Montand: «Mais la vie sépare ceux qui s’aiment/ Tout doucement, sans faire de bruit/ Et la mer efface sur le sable / Les pas des amants désunis» in: Les Feuilles Mortes”.