Na abertura do 23º Encontro de Medicina Geral e Familiar (MGF) do Alto Minho, o Dr. Alcindo Maciel Barbosa ofereceu aos participantes a possibilidade de ouvirem a conferência «SNS – Passado, o grande mestre do futuro». Por se tratar de uma comunicação com enorme valia ao nível da retrospetiva histórica da evolução dos cuidados de saúde primários em Portugal, bem como da projeção de valores fundamentais para o seu futuro, deixamos aqui o texto da conferência na íntegra, para que todos os colegas dela possam desfrutar.
SNS – Passado, o grande mestre do futuro
Primeiro que tudo, um agradecimento especial à organização deste 23.º Encontro de MGF do Alto Minho, na pessoa da Dra. Sofia Azevedo, pelo convite que me dirigiu para efetuar esta comunicação.
Quero, também, expressar os meus parabéns pelo contínuo esforço da Delegação Distrital da Associação Portuguesa de Médicos de Medicina Geral e Familiar de Viana do Castelo em manter vivo este espaço de reflexão e de aprendizagem, ao longo de tantos anos. Como cidadão desta comunidade quero expressar a minha gratidão pelo vosso empenho e capacidade de iniciativa. Muito obrigado.
Convidou-me a Dra. Sofia Azevedo para abordar o tema: “SNS – Passado, o Grande Mestre do Futuro”, convite que reputo de elogioso para a minha pessoa, que já me encontro afastado das lides do dia a dia de um serviço de saúde, mas que, pelas responsabilidades que assumi no “Passado” na organização e funcionamento dos serviços de saúde do Alto Minho e da Região Norte, não pude recusar.
Naturalmente, que esta tarefa me obrigou a consultar documentos, legislação, arquivos, reler textos que já estavam arrumados numa prateleira qualquer da memória relativa ao “Passado”, para poder ler, no filme do tempo, o que de mais pertinente se esconde nas múltiplas vivências vividas, passe a redundância, e que possa ser útil para o presente e, principalmente, para o futuro.
Gastei algum tempo, tive de reavivar memórias, o que não foi fácil na minha idade, mas quero dizer que me foi muito gratificante concretizar todo este exercício e ter consciência das boas coisas que, entretanto, ocorreram e me permitiram identificar estratégias que se mantêm totalmente adequadas, e, outras, que nunca tiveram o investimento que deveriam ter tido.
Recuei aos idos anos de 1971, ano em foram criados os Centros de Saúde, com uma cultura, conceitos e estratégia de Cuidados de Saúde Primários (CSP), sete anos antes da célebre Conferência da Alma-Ata, em que, internacionalmente, foram criados e valorizados os CSP.
Devemos continuar a agradecer àquela equipa de três personalidades, de visão fora de série, que concebeu e legislou tal reforma que tantos êxitos proporcionou à população portuguesa até à data hoje, os médicos: Dr. Baltasar Rebelo de Sousa, Prof. Dr. Gonçalves Ferreira e Prof. Dr. Arnaldo Sampaio.
Deste “Passado” de há 52 anos, plasmado no velho Decreto-Lei n.º 413/71, realço seis conceitos que continuam absolutamente atuais, e que marcaram positivamente o funcionamento dos CSP, e do SNS em geral, ao longo deste longo período, tais como:
1- O primeiro conceito que merece ser realçado é o da “visão holística da Saúde”.
Este é muito mais amplo do que o que decorre dos atos das próprias especialidades médicas, que até à data formatavam a organização hospitalar, por exemplo, e cuja influência perdurou durante décadas.
Na altura, no já citado DL 413/71, foram definidos termos tais como: “Saúde Infantil” versus Pediatria, ou seja, que a “Saúde de uma Criança” é algo que não se consegue só com o contributo de um pediatra, que habitualmente trabalha num hospital, mas deriva de um contexto mais amplo e complexo, recolhendo contributos frequentes da família, da sociedade e do contexto socioeconómico em que aquela criança vive e vai crescer, que vão contribuir ou não para o seu estado de saúde. Esta visão é uma delícia quanto à visão de saúde, inovadora e atrevida em termos de estruturação dos CSP dado o seu enquadramento numa norma legal de elevada dignidade, que formatou, sem margem para dúvidas, o funcionamento futuro dos CSP.
Igualmente foram decididos termos como: o de “Saúde Materna” versus Obstetrícia, “Saúde dos Adolescentes” (lembremo-nos que na altura os adolescentes eram terra de ninguém em termos de especialidade médica: para a Pediatria já não eram e a Medicina Interna tinha alguma insegurança em se responsabilizar por eles, tendo a Pediatria lutado por eles só há bem pouco tempo); ou os conceitos de “Saúde dos Adultos” e “Saúde dos Idosos” ou até o de “Saúde Ambiental”. Todos eles exemplificam bem a inovadora visão estratégica e o novo potencial de intervenção em saúde, que ainda hoje defendemos e muito gostaríamos que fosse a prática generalizada pela maioria de nós, profissionais de saúde.
Destaco a “visão fora da caixa” associada à criação do termo “Saúde Ambiental” tão pertinente e atual, seja pela relação direta do ambiente na saúde, como, inversamente, o das intervenções em saúde no próprio ambiente. Relembro a qualidade da água que, hoje, bebemos das nossas torneiras, a qualidade da água das praias e o enorme número de bandeiras azuis espalhadas pelo país, ou o controlo de alguma poluição atmosférica, a melhoria da qualidade de vida nos locais de trabalho e mesmo em nossas casas, que são resultados em saúde consequentes daquela “visão”. A nossa Saúde Pública melhorou muito ao longo de todo este período.
2- Em segundo lugar, quero dar enfase a outros dois conceitos, que estão associados entre si, são eles “o do acesso e o da proximidade”.
Neste contexto, foram programados e construídos Centros de Saúde novos em todas as sedes dos concelhos e em algumas localidades de grande dimensão demográfica (o primeiro foi o de Vizela, liderado pelo nosso colega do Alto Minho o Dr. Pinho da Silva), foi, na altura, planificado e decidido construir uma rede de CSP que cobrisse a totalidade do país, bem como foram estimuladas as “visitações domiciliárias”, como se designavam à altura, com a deslocação dos profissionais de saúde aos domicílios dos doentes, dos cidadãos com dificuldades de mobilidade e de acesso. Ninguém podia ficar para trás, como se usa dizer hoje.
Se os “domicílios” ainda são e devem ser práticas correntes nos nossos dias, progressivamente mais solicitados, se atentarmos ao envelhecimento da população e à inexistência de transportes públicos em muitas locais, já a barreira no acesso por inexistência de suficiente número de profissionais nunca foi concretizada completamente ao longo deste longo período de tempo, como continua a gerar muitas dificuldades e iniquidades no nosso país, sendo um aspeto que não está e nem prevejo que venha a estar resolvido a curto prazo.
Esta situação, aliás, lema do vosso encontro: “Saúde em proximidade, ontem, hoje e sempre” exige um investimento sério de todos, exige um modo de estar cívico mais empenhado e solidário e um provável maior desprendimento de ideários políticos pelos políticos com responsabilidade na gestão do SNS, como perder o medo de experimentarmos novas soluções organizativas na prestação de cuidados de saúde. Saibamos, também, ser atrevidos como o foram no passado, para proporcionar às populações solução eficazes e efetivas quando, algumas delas, estão socialmente disponíveis.
3- O terceiro conceito que entendo dever ser valorizado, é o da necessidade de apostarmos a sério na “Promoção da Saúde”, na “Proteção da Saúde” ou na “Prevenção da Doença”.
Esta última designação – “Prevenção da Doença” – foi a descrita no dito decreto-lei de 1971. As outras duas terminologias são conceitos mais apurados, mais burilados do ponto de vista teórico do conceito, que nasceram bastante mais tarde: a “promoção da saúde” só em novembro de 1986, com a Carta de Otava, e a “proteção da saúde” ainda uns anos depois, por volta de 2009. Estas três componentes são, e continuam a ser, essenciais e prioritárias em um qualquer processo de intervenção em saúde. Basta-nos lembrar do seu impacte no controlo da recente pandemia que todos vivemos.
Contudo, sempre foram o parente pobre da política de saúde, pouco valorizados quer pelos próprios profissionais, quer pelos gestores dos serviços de saúde.
Segundo a OCDE, na sua recente publicação do “Health at a Glance: Europa 2022”, em Portugal, em 2020, a percentagem das despesas correntes em saúde gastas em prevenção não atingiu os 2% daquelas. Este cenário tem de ser corrigido a muito curto prazo, se pretendermos ser eficazes, eficientes e efetivos na melhoria do funcionamento dos serviços de saúde e em proporcionar à população um superior nível de Saúde.
4- Um quarto aspeto prioritário na referida criação dos Centros de Saúde, foi o princípio de sabermos “dar prioridade aos grupos mais vulneráveis da população”.
Creio que todos subscrevemos tal determinante, tal princípio, embora, nos dias de hoje, a sua magnitude transferiu-se das crianças e grávidas, que apesar de fisiologicamente serem sempre vulneráveis, já as poderemos considerar necessidades sentidas e explicitas pela população, dizia eu, que a maior magnitude transferiu-se agora para o grupo dos idosos, que vivem muitas vezes isolados, sós ou acompanhados por outro idoso, de uma maneira geral com baixo nível de literacia, com as suas crescentes comorbilidades e limitações de mobilidade, derivadas da vida dura que vivenciaram.
5- O quinto conceito, definido na altura com uma clareza cristalina, prende-se com a necessidade de sabermos “trabalhar em equipa”.
Na Saúde, como em muitas outras atividades, no passado como agora, ninguém faz nada sozinho, e a multidisciplinaridade, só por si, fomenta sinergias que proporcionam mais e melhores cuidados que beneficiam os doentes, os cidadãos e, até, permitem poupar recursos em muitas das situações.
Hoje, com a evolução do saber científico e a criação de inúmeras novas profissões, a equipa de saúde está muito mais ampla do que a dos clássicos dois elementos: médico e enfermeiro. Agora, uma equipa de CSP em Portugal pode ter até 10 licenciaturas, que passo a citar: o médico e o enfermeiro, naturalmente, mas também o nutricionista, o psicólogo, o fisioterapeuta, o assistente social, a higienista oral, o médico dentista, o terapeuta da fala ou o terapeuta ocupacional. Espero não me ter esquecido de nenhuma.
Com esta abrangência de saberes, de novas competências técnicas, vai aumentar o número de áreas de alguma sobreposição de conhecimentos, geradoras de potenciais conflitos, mas, com humildade e a determinação de pensarmos primeiro na Saúde e Bem-estar do doente e do cidadão, saberemos dizer não aos conflitos de poder, saberemos dizer não aos corporativismos das profissões, saberemos dizer não às politiquices que venham do ambiente externo aos serviços de saúde, mas, em oposição, saberemos dizer um sim convicto à transdisciplinaridade, porque os doentes e os serviços de saúde precisam dela, cada vez mais, como vamos ver mais à frente.
6- Por último, como o sexto aspeto a valorizar daquele documento que criou os CS e os CSP em Portugal, gostava de realçar aquilo que designo de uma “cultura de militância ativa dos profissionais dos Centros de Saúde de então em procurar as pessoas com problemas de saúde”, com o objetivo de atingirmos a cobertura universal e o controle dos mesmos. Enfim, a digna atitude de cumprirem a sua obrigação social como profissionais de saúde.
Se faltava um bebé à consulta, se um recém-nascido não aparecia para fazer o “teste do pezinho” nos primeiros dias de vida, se nos morria uma criança, se uma grávida não fazia a vigilância da sua gravidez, se uma criança ou adulto não fazia as vacinas na data prevista, se um doente com tuberculose não aparecia no dia certo para efetuar a toma da medicação, de imediato uma enfermeira saía para rua procurar encontrar a pessoa e perceber o porquê daquela “falta”.
Esta preocupação pública dos serviços de saúde com a saúde das pessoas deu imensos resultados positivos, que ainda hoje perduram, como reforçou a confiança das pessoas nos profissionais e nos serviços de saúde. Tantas vezes ouvimos: eles preocupam-se connosco.
De facto, este “Passado do SNS, dos CSP, constitui um grande mestre do futuro”.
As estratégias, os conceitos, valores e princípios corretos de há 52 anos, continuam na grande maioria, para não dizer na sua totalidade, válidos à luz do conhecimento científico de hoje, sobreviveram a variados testes e estudos epidemiológicos, foram validados por inúmeros estudos científicos robustos, e estão coerentes com o saber de hoje. Hoje, como na altura, só temos de os saber identificar, perceber, interpretar, internalizar e aplicá-los, adaptando-os ao nosso quotidiano, aos novos contextos, tendo em conta o peso relativo dos novos determinantes da saúde.
Mas outros marcos houve no passado que tiveram, igualmente, um impacte positivo na saúde da população até à data. Permitam-me que cite alguns relacionados com os CSP e a Saúde Familiar:
– Em 1982, foram integrados os CSP e nasceu a Carreira de Clínica Geral: duas decisões históricas que foram absolutamente pertinentes e assertivas;
– Em 1987 nasceram os Centros de Saúde de 3.ª Geração, que, na altura, praticamente não viram a luz do dia;
– Em 2006 nasceram as primeiras USF e em 2008 a Reforma dos CSP, que beneficiou da experiência passada de 1987 com os próprios Centros de Saúde de 3º geração;
Ou, ainda em 2008, o facto da OMS ter reafirmado que: “CSP, agora mais do que nunca”.
Mas, então está tudo feito? Fizemos tudo o que deveríamos ter feito no passado?
Não, de maneira nenhuma. O nível de saúde da população portuguesa melhorou imenso, inclusive em alguns indicadores de atividade, de cobertura e mesmo de resultados em que somos dos melhores do mundo (destacam-se a diminuição da mortalidade infantil e a elevada cobertura vacinal), mas, ainda temos imensos aspetos com que nos preocupar hoje, como no futuro. Em Saúde nunca está tudo realizado…
Se, por exemplo, cruzarmos o conceito do trabalhar em equipa com o da eficácia e da efetividade; se cruzarmos o conceito do acesso com o da qualidade de cuidados de saúde; a obtenção de resultados em saúde e bem-estar para o doente e para população, com sustentabilidade; ou, o evitar a iatrogenia; veremos que ainda temos muito esforço que desenvolver até assegurarmos a desejada “integração de cuidados”, os designados “processos assistências integrados” ou valorizarmos e respeitarmos o “percurso do doente” por este verbalizado. O curioso, é que estes processos muitas vezes nem necessitam de mais recursos financeiros, basta-nos sentarmo-nos à volta de uma mesa com vontade e uma determinação pragmática, veja-se o que se passou com as “Vias verdes do AVC e Coronária”.
A estratégia de valorizarmos todo o cidadão, todo o doente, onde quer que se encontre, no seu contexto social, económico e cultural é básico para estruturarmos a intervenção em saúde e decidirmos qual é o profissional de saúde mais adequado para intervir prioritariamente, apesar dessa decisão estratégica dever ser sempre analisada e decidida em equipa alargada.
Aqui urge, relembrar uma frase bem do passado, dita por Hipócrates, relativamente à ação do profissional de saúde: “Primum non nocere” – “primeiro não prejudicar”.
Uma frase tão simples, tão clara, tão óbvia e, por não a termos respeitado, hoje, temos: intervenções cruentas não efetivas e desnecessárias; temos um excesso de prescrição de meios complementares de diagnóstico (lá vêm os doentes com sacas de exames duplicados e muitas vezes sem indicação para os terem realizado); temos o sobrediagnóstico, o sobre tratamento, o excesso de prevenção; e, como consequência, geramos um forte risco de iatrogenia, desperdiçamos recursos, ou, temos agora que lidar com um grave problema de saúde pública como o da multirresistência aos antibióticos.
Estes excessos são na sua grande maioria responsabilidade nossa, dos profissionais de saúde, com especial ênfase para os médicos, que são os prescritores por excelência; são consequência da pressão dos doentes sobre os profissionais para prescreverem alguma coisa e se for um antibiótico ainda melhor, mesmo que seja para uma doença vírica; são responsabilidade dos média que também dão visibilidade excessiva a esta pressão consumista de medicamentos (lembro-me bem da pressão sobre o delegado de saúde para fechar uma escola ou distribuir medicamentos a toda a população da escola, em vez de só aos contactos, por ter sido detetado um caso de meningite, mesmo que fosse vírica, e aquilo que era preciso fazer era simplesmente abrir as janelas para ventilar as salas onde tivesse estado o doente), e, pior, os média e, agora, as redes sociais aumentam a ressonância social da vontade popular menos informada, deturpam, manipulam, pela negativa, o saber científico, constituindo a fase prévia de populismos; como, ainda, são responsabilidade da indústria farmacêutica e da dos equipamentos médicos, que tudo fazem para que possam aumentar as suas vendas e inerentes lucros, sem se preocuparem com as pessoas, com os custos para a sociedade, para os serviços de saúde e para a sua sustentabilidade.
Numa outra perspetiva afim, surgem, agora, dois novos fenómenos sociais com repercussão negativa na Saúde e no funcionamento dos serviços de saúde: um, o dos que prezam e têm prazer em espalhar notícias falsas nas redes sociais, por ignorância ou com puros interesses políticos pessoais (basta-nos lembrar a situação recente durante a pandemia, com dois presidentes de grandes países a fazerem afirmações grotescas nos grandes meios de comunicação, não hesitando em mentir descaradamente e a fazer sugestões atentatórias do mais elementar bom-senso e conhecimento científico); o segundo, um tipo de movimento social, liderado, até, por pessoas de elevada literacia e de classe social média-alta, numa atitude que reputam de muito ecológica e muito reivindicativa da liberdade individual, com enorme envolvimento das redes sociais, que andam a reagir negativamente a medidas preventivas, como as vacinas, a proibir de vacinar os seus filhos, usufruindo egoisticamente do esforço de toda a restante comunidade que lhes proporciona imunidade de grupo, e que não hesitam em divulgar por todos os meios sociais afirmações que são absolutamente erróneas, que são falsas, quando a ciência e o tempo já demonstraram, com objetiva e robusta evidência, serem efetivas e seguras, como é o caso das vacinas.
Como vemos, problemas com que os profissionais de saúde e os responsáveis pela gestão dos serviços de saúde tenham com que se preocupar não faltam e, senão, alguém os inventa.
Se focalizarmos, agora, a nossa atenção um pouco mais no presente, teremos de nos preocupar com novos problemas que não o eram no passado, ou porque não existiam, como a obesidade (a existir era a fome, o raquitismo, a deficiente alimentação), ou eram social e tecnicamente pouco valorizados, como a não prática de atividade física.
Segundo a recente publicação: “Estado de Saúde na EU. Portugal. Perfil de saúde 2021”, publicado pela União Europeia, com o apoio da OCDE e da OMS, em setembro de 2021, passo a citar: “os principais fatores que contribuem para os problemas de saúde e para a mortalidade em Portugal, são o álcool, a obesidade e a falta de exercício físico”.
Se pretendermos obter dados mais finos, mais desagregados, e consultarmos o INE, este também informa que, cito: “em 2020, entre a população portuguesa maior de 18 anos 53% tinha excesso de peso, incluindo a obesidade; já quanto às crianças, em 2019, 29,7% tinham excesso de peso (incluindo a obesidade) e 11,9% apresentavam obesidade”.
Assim, podemos concluir que apesar de as equipas de Saúde Familiar terem seguido de perto todas as crianças nos Centros de Saúde, como o fizeram com os adultos, terem cumprido as orientações da DGS sobre os critérios de agendamento das consultas e o seu modus operandi, o estado de saúde daquelas pessoas agravou-se sustentadamente e de forma sub-reptícia. Então, devemos concluir que os indicadores que usamos, os mecanismos de alerta de que dispomos não estão a funcionar e teremos de os rever urgentemente.
Se, por outro lado, consultarmos o último “Health at a Glance: Europa, 2022”, publicado pela OCDE, o valor de “excesso de peso (incluindo a obesidade) para a população portuguesa adulta é de 56%”, ou seja, há coerência entre estas três respeitáveis e idóneas fontes, o que confere rigor à análise, confirma este diagnóstico de saúde da nossa população, como confirma que este problema de saúde é de enorme magnitude, o que irá ter repercussões negativas nas necessidades em saúde em Portugal.
Sabemos, pelo estudo recentemente publicado pela Faculdade de Medicina do Porto relativamente à região Norte, que os obesos e os cidadãos com excesso de peso consomem mais consultas, mais MCD e tratamentos do que os de peso normal, (o dobro, era o título do jornal), como, passo a citar: “tiveram mais do dobro de ausências ao trabalho por motivos médicos e pelo menos o dobro de dias de doença”. Qualquer dia, quando um jornalista der por ela, lá virão os média tabloides a criticar o SNS porque as cirurgias bariátricas estão atrasadas. Pudera, com a população a comer mal, a comer fast-food, a comer muito e a não praticar atividade física, o que podemos esperar?
Situação idêntica encontramos para os valores respeitantes à “não prática de atividade física”, e constata-se que em ambos os quadros (excesso de peso e não prática de atividade física) são mais prevalentes na população de mais baixo nível de escolaridade.
Em conclusão: o excesso de peso, a obesidade, como a baixa escolaridade, o baixo nível de literacia e a baixa situação socioeconómica continuam a constituir importantes fatores de risco para os principais problemas de saúde. Assim, as atuais e futuras estratégias de intervenção em saúde dos CSP terão, necessariamente, de ter em conta estas realidades, como teremos de ver a Saúde a trabalhar de um modo muito mais articulado e permanente com a Segurança Social, daí uma das razões para termos Assistentes Sociais nos CSP, como de nutricionistas em muito maior número para combatermos esta pandemia do excesso de peso.
Enfim, não é mais do que a nossa conhecida “Lei dos Cuidados Inversos” de Tudor Hart, de 1971, a funcionar e nós a ignorá-la: “Onde há mais necessidades em saúde, há menos serviços, menos recursos”.
Para este tipo de análise, que a pretendemos objetiva, rigorosa, independente e atual, sugiro que consultemos, também, o Institute for Health Metrics and Evaluation, de Washington, EUA, que publica com periodicidade os dados relativos à designada” carga de doença” de todos os países.
Os últimos dados relativos a Portugal são os dos anos 2009 e 2019, que nos mostram que as “causas de mais mortes e deficiências combinadas” apontam para uma diminuição das “doenças cerebrovasculares e isquémica do coração”, que me parece legítimo associar ao impacte positivo das respetivas “Vias Verdes” e às melhores condições de tratamento hospitalar na fase aguda, com a eficaz desobstrução dos trombos por meios físicos e/ou químicos.
Contudo, não nos podermos esquecer que, nestes dois quadros clínicos em concreto, a reabilitação por fisioterapeutas no pós acidente agudo está muito longe de ser a que estes doentes necessitam em qualidade e intensidade, de a podermos assegurar no domicílio sempre que isso seja necessário, pelo que estamos a ver passar o tempo, a perder a oportunidade de prestarmos a estes doentes todos os cuidados que merecem e que lhes podemos facultar, deixando alguns destes com limitações para o futuro que seriam de todo evitáveis.
Em minha modesta opinião, os CSP, os Centros de Saúde precisam de dispor de fisioterapeutas em tempo inteiro, como os ambulatórios dos hospitais públicos têm de ser reforçados em fisioterapeutas, para que ao longo de todo o dia possam assegurar aos doentes com AVC e com Insuficiência Coronária Aguda os cuidados de fisioterapia no período pós-agudo de que necessitam, designadamente enquanto os dos CSP não começam a tratá-los, em local bem mais próximo, ou mesmo no domicílio se for o caso.
Estes profissionais a contratar para os CSP e para os Hospitais geram manifestos ganhos em saúde para os doentes e para a sociedade, ao ponto de serem pagos com as verbas poupadas pelo SNS de entre as que, mais tarde, seriam despendidas nas convenções de Medicina Física e Reabilitação, só que, neste caso, sem os mesmos resultados para os doentes, dado o longo tempo que, entretanto, já decorreu. Esta afirmação não é minha, mas sim resulta de vários estudos robustos no terreno, a que tive acesso. Assim, além destes ganhos diretos para os doentes e para o SNS, simultaneamente, o país também irá obter ganhos financeiros e sociais associados às inúmeras deslocações que aqueles doentes e familiares iriam realizar para se deslocarem a tais clínicas (as frequentes 20+20+20 sessões), viagens essas que já não vão ser realizadas em tão elevado número, como ao correspondente menor número de dias de ausência ao trabalho e de subsídio de emprego, porque os doentes voltam às suas profissões mais cedo, se forem tratados melhor e mais cedo.
Temos de saber ler estrategicamente as soluções organizativas das intervenções em saúde, como temos de saber fazer bem os cálculos de todos os custos envolvidos: os diretos e os indiretos, os para o doente, os para a sociedade e os para o SNS.
Continuando na análise dos dados disponibilizados pelo Institute for Health Metrics and Evaluation, igualmente constatamos que, agora e ao contrário das situações anteriores, continuam a aumentar de 2009 para 2019: “a dor lombar baixa, a diabetes, a DPOC, as infeções respiratórias inferiores, o cancro do pulmão, o colorretal e a Alzheimer”. Se a esta realidade juntarmos os dados relativos aos “fatores de risco que provocam a maioria das mortes incapacidades de forma combinada”, teremos de concluir que as ditas novas licenciaturas nos CSP – os nutricionistas, psicólogos, fisioterapeutas, assistentes sociais e terapeutas da fala, são profissionais que obrigatoriamente os MGF precisam de dispor e incluir nas suas equipas de Saúde Familiar, essenciais e mais competentes que são para lidar com alguns destes problemas de saúde e alguns destes fatores de risco, permitindo que os MGF fiquem mais libertos para os atos em que são os MGF os únicos preparados para os executar.
Se pensarmos nos atuais problemas de Saúde Mental, que tanto se agravaram com a pandemia, e nas dependências que continuam a assolar a nossa população, de que realço o álcool, as novas drogas de síntese e o jogo online, igualmente concluiremos da enorme necessidade de termos psicólogos a integrarem as equipas de Saúde Familiar.
Só assim, obteremos melhores, mais eficientes e mais efetivos cuidados de saúde, só assim, podemos tentar controlar os determinantes que são “os principais fatores que contribuem para os problemas de saúde e para a mortalidade em Portugal como: o álcool, a obesidade e a falta de exercício físico”, como bem afirmam a União Europeia, a OCDE e a OMS, no documento que atrás citei.
Mas, além destes dados das fontes “tradicionais” de investigação em saúde, poderemos agregar alguns indicadores do tipo proxy, que no passado não estavam disponíveis ou não se valorizavam de todo, mas que não deixam de chamar a atenção para realidades associadas a problemas de saúde, com que, penso, no futuro os CSP terão de se envolver, como por exemplo:
– O jornal Expresso, do passado dia 12 de maio de 2023, afirmava que “só 24 % das crianças vão a pé para a escola”, ou seja, há um deficit de estímulo para a autonomia e para prática da atividade física em três quartos das nossas crianças;
– No Instagram de um pediatra brasileiro este conclui que: “por semana, as crianças passam 44 horas em aparelhos eletrónicos e 1 hora e 15 minutos brincando fora da casa”, a mim até me parece que, por cá, brincam menos do que este tempo fora de casa… Há, aqui, um deficit de socialização e de prática de atividade física, nomeadamente, há um “deficit de natureza”, como o designam certos autores, por a criança pouco brincar na natureza e pouco aprender com ela;
– Há um excesso de entretenimento das crianças, e ainda em fases bem pequenas, com tablets e telemóveis, o que causa deficit de relacionamento social e afetivo com os pais, familiares e amigos;
– Ou, como diriam os japoneses, nos dias de hoje “há um déficit de floresta”, que, segundo afirmam: “reduz o stress, diminui o ritmo cardíaco e a tensão arterial, reforça o sistema imunitário, preserva as reservas de energia, reforça a capacidade física, resistência e vitalidade, melhora a concentração e contribui para o relaxamento e melhoria do sono”. Será que estes tipos de afirmações têm evidência científica? Não sei, mas sei que esta prática não custa dinheiro, que temos muitas florestas, bem próximas de nós por onde podemos deambular, e a prática de passearmos no meio de florestas não corre o risco de prejudicar a nossa saúde;
– Por último, porque não estimularmos e passarmos a praticar muito mais frequentemente a “caminhada nórdica”, prática fomentada pelos nórdicos desde 1994 e pelos franceses desde 2000. Segundo se pode ler, esta prática: “trabalha todos os músculos, queima mais calorias do que a caminhada normal, ajuda a combater o stress, estimula a resistência, a força, a flexibilidade, a coordenação, a postura e o equilíbrio”.
Sendo assim, porque não promovermos esta atividade que pode ser praticada por todos os grupos etários, com quase todas as condições físicas, em qualquer lugar, ou nos inúmeros e bonitos passadiços ou pedovias que dispomos por todo o país, quando só precisamos de investir cerca de 20/25€ nuns bastões? Com este pequeno investimento para toda a vida, e o apoio dos fisioterapeutas dos CS para adequarem a atividade física às noxas e às condições de mobilidade de cada cidadão, poderemos diminuir algumas prescrições e consultas aos MGF e proporcionar mais saúde e bem-estar às pessoas.
Em modo de conclusão, para não ultrapassar o tempo que me foi atribuído e não vos fatigar, quero afirmar que concordo com os historiadores, quando nos dizem que: A História ao permitir-nos conhecer o passado, ajuda-nos a perceber o presente e a programar o futuro.
Espero que esta rápida viagem pelo “Passado” e algum do presente, vos tenha sido útil.
Obrigado, Dra. Sofia Azevedo por me ter proposto este tema, cuja preparação e recolha no “passado” do nosso SNS, e em alguns dos problemas do presente, me proporcionou momentos de agradável prazer ao olhar com sentido crítico para o que vivenciamos, muitas vezes sem o ter visto na altura.
Tenho dito.