Durante o último Encontro Nacional de MGF a Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF) apresentou um position paper sobre a literacia em saúde, no qual defende que a literacia em saúde e os autocuidados são de grande importância para a promoção e proteção da saúde da população, mas também para a eficácia e eficiência da prestação de cuidados de saúde, sendo, por isso, um fator crítico para a sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde”. Em breve entrevista, o médico de família e membro da Direção Nacional da APMGF Mário Santos, que apresentou o documento em Vilamoura, sublinha o facto de as pessoas com menor literacia em saúde apresentarem maiores taxas de internamento hospitalar, utilização mais intensiva dos serviços de saúde, pior estado geral de saúde e menor probabilidade de aderir a um plano de prevenção e tratamentos.
O que motivou a APMGF a lançar em 2023 um position paper sobre a literacia em saúde e o que pretende alcançar com o mesmo?
Mário Santos – A literacia em saúde (LS) nos últimos tempos entrou definitivamente no léxico da opinião e da política portuguesa como uma das chaves da solução da sustentabilidade futura do SNS. Temos sido questionados em diferentes contextos sobre qual a relevância que atribuímos à LS, como se passa da teoria à prática, e quais os recursos necessários.
A principal motivação para divulgar um position paper sobre este tema, também abordado no livro recentemente publicado “Um Novo Futuro para a MGF”, no capítulo 9, “Condições para uma MGF com Qualidade – O Futuro”, foi dar a nossa perspetiva sobre o significado e a importância da LS e, deste modo, contribuir para o esclarecimento do conceito e da sua operacionalização no terreno. Trata-se de um conceito lato, ainda em construção, e por isso vulnerável a diferentes interpretações e abordagens avulsas.
Faltam atualmente políticas nacionais estruturadas que façam a diferença ao nível da promoção da literacia em saúde?
As políticas estruturadas para promover a LS devem ter em conta o alcance da definição do conceito. Consideramos que as políticas para a promoção da LS estão muito centradas na pessoa singular, em aceder, compreender, avaliar e aplicar a informação para promover a sua saúde, e nos profissionais de saúde, nomeadamente na sua capacitação na promoção da capacitação dos pacientes, mas pouco focadas na comunidade e na comunicação social. As pessoas aprendem um comportamento saudável observando os outros, por isso é fundamental desenvolver estratégias na escola, no trabalho, nas comunidades, nos media, para que desde cedo e de forma oportunista se modelem comportamentos saudáveis.
Hoje em dia, o significado da LS tem um outro alcance para além da pessoa ser capaz de compreender folhetos e prescrições, ler rótulos de alimentos e bulas de medicamentos, ou marcar uma consulta. Atualmente a LS é vista no sentido da promoção da autonomia e autodeterminação das pessoas em relação à sua saúde, para que tenham capacidade para tomar decisões fundamentadas, no dia-a-dia, em casa, no local de trabalho e na utilização de serviços de saúde. Julgamos que esta não pode ser uma tarefa exclusivamente dos profissionais de saúde ou dos serviços de saúde. É necessária uma abordagem integrada envolvendo vários atores de diversas áreas da sociedade que promovam a cidadania com aquele sentido. Falta conhecer o pensamento e a estratégia das políticas nacionais, para termos uma perspetiva global do mapa de intervenção e das estratégias de atuação.
A Direção-Geral da Saúde realizou uma avaliação da LS da população portuguesa no âmbito do Plano de Ação para a Literacia em Saúde 2019-2021 e determinou que sete em cada 10 pessoas apresentam elevados níveis (suficiente e excelente) de LS. Estes resultados refletem a realidade sentida pelos MF portugueses e devem deixar-nos descansados?
Os dois maiores estudos sobre LS em Portugal na última década, realizados em 2015-2016 (Questionário Europeu da Literacia em Saúde, HLS-EU) e em 2020-2021 (Versão Portuguesa do novo questionário da LS, HLS-19), mostraram uma evolução positiva ao verificar-se uma diminuição de 50% para 30% da população que apresentava níveis reduzidos de LS (o nível de literacia “inadequado” desceu de 11% para 8% e o nível problemático desceu de 38% para 22%). Estes estudos são importantes para se fazer uma avaliação de conjunto da população. No entanto, devemos ter em conta que os resultados medem a autopercepção dos inquiridos, refletindo a compreensão que estes têm das suas capacidades e caraterísticas pessoais.
A LS deve ser entendida como um processo contínuo que se vai desenvolvendo ao longo da vida, por meio de diversas experiências e encontros com diferentes contextos de saúde, não é uma competência que se garante para a vida uma vez adquirida, portanto, exige uma atenção continuada.
A sustentabilidade futura do SNS está dependente, em última linha, da melhoria dos índices de LS dos portugueses?
Numa época onde se assiste a uma crescente fragmentação dos cuidados de saúde, consideramos que a LS e os autocuidados são de grande importância para a promoção e proteção da saúde das pessoas, mas também para a eficiência da prestação de cuidados de saúde, sendo, por isso, fatores críticos para a sustentabilidade do SNS. Entendemos que a LS dos portugueses beneficiaria muito com uma efetiva integração de cuidados. A ausência de um processo clínico único, a comunicação escassa ou inexistente entre serviços do sector publico, privado e social, onde muitas vezes o paciente é o mensageiro da informação clínica entre médicos, e a falta de planeamento da informação entre os níveis de cuidados, gera frequentemente mensagens contraditórias e equívocas ao paciente, podendo mesmo piorar os índices de LS.
Sabemos que as pessoas com menor LS têm maiores taxas de internamentos hospitalares; utilizam mais os serviços de saúde; têm um pior estado de saúde e menor probabilidade de aderir a um plano de prevenção e tratamentos. Por outro lado, uma continuidade de cuidados percebida pelo paciente, independentemente do nível de cuidados e do local de atuação, promove a LS.
O que pode fazer cada MF, a título individual, para melhorar a literacia em saúde dos seus utentes?
As intervenções em saúde fracassam quando se centram na responsabilização individual, ignorando a visão do mundo da pessoa, as suas necessidades em saúde e o estilo de aprendizagem. Para melhorar a LS dos seus utentes os MF devem adotar uma atitude menos paternalista e mais facilitadora da autonomia, atendendo às preferências, aos objetivos, aos valores e às crenças da pessoa. A abordagem deve ser centrada na pessoa, personalizada, respeitando o ritmo de um novo modo de ver e agir, à medida das aptidões das pessoas.
Realçam-se algumas competências de comunicação em saúde para melhorar a LS: o contacto visual e a adoção de uma atitude de escuta activa de forma a que o paciente se sinta ouvido e compreendido; falar devagar e limitar a quantidade da informação, geralmente não mais do que três mensagens por encontro; usar linguagem simples de fácil compreensão; avaliar o entendimento do problema para o paciente e o desejo de mais informação e usar técnicas de ensino inverso (teach back), convidando o paciente a recapitular com as suas palavras o que entendeu do que lhe foi dito.