A Região Europeia da WONCA publicou no final de 2022 o documento «Core Values and Principies of General Practice/Family Medicine» cuja versão traduzida em português e intitulada «Competências nucleares e princípios da Medicina Geral e Familiar» já foi disponibilizada pela APMGF no seu centro de documentação. Esta importante tábua de valores da especialidade foi ainda apresentada no último Encontro Nacional de MGF, em Vilamoura, por Carlos Martins, um dos membros do grupo de trabalho formado pela WONCA Europa precisamente para demarcar as competências e princípios da MGF. Em breve entrevista, Carlos Martins explica-nos por que motivo é essencial publicitar nos dias que correm os valores centrais da MGF e que mais valia prática pode estar associada a esta tomada de posição.
Qual o objetivo da WONCA Europa com a publicação de um documento que resume as competências nucleares e princípios da MGF e por que razão é importante fazê-lo agora?
Carlos Martins – Ao nível da Região Europeia da WONCA contamos com um documento que tem sido referência desde há muito, a Definição Europeia de Medicina Geral e Familiar (MGF), onde constam as competências nucleares e as características fundamentais da nossa especialidade. Trata-se de um documento robusto, que gradualmente tem vindo a ser atualizado, mas por volta de 2019 começou a crescer no seio das organizações da WONCA Europa, em particular em reuniões do seu Conselho Geral, a ideia de que o mundo estava a evoluir e que tal documento estava necessitado de reflexão e revisão. Aliás, as últimas atualizações ainda não contemplavam tendências atuais da nossa sociedade, como a disseminação das redes sociais ou das ferramentas digitais, já para não falar daquilo que acabou por surgir com a pandemia. Em simultâneo, começou a desenvolver-se um movimento dentro da Nordic Federation of General Practice (NFGP) – fórum colaborativo de colegas oriundos da Noruega, Suécia, Finlândia, Dinamarca e Islândia – no sentido de refletir sobre a necessidade de rever estes conceitos. As organizações destes países nórdicos acabaram por colocar em cima da mesa a proposta de a WONCA Europa, no seu conjunto, criar um novo documento que agregasse os core values da MGF, ou se quisermos em português valores fundamentais da especialidade.
E como avançou, na prática, este processo de revisão?
A WONCA Europa designou um grupo de trabalho, coordenado pela Dra. Anna Stavdal, que por sua vez convidou um conjunto de outras pessoas para pertencer ao grupo, nomeadamente representantes das redes pertencentes à WONCA Europa. Assim, acabei por integrar essa equipa, representando a European Network for Prevention and Health Promotion in Family Medicine and General Practice (EUROPREV).
Este foi um documento desenvolvido ao longo de um ciclo de dois anos, com muito debate à mistura. Primeiro, foi importante perceber o que se poderia entender por valores fundamentais e tivemos a oportunidade de trocar e analisar muitas informação, inclusive de fora da Medicina, já que muitas organizações não clínicas e até empresas têm a tradição de consolidar valores fundamentais para a sua atividade. Depois, olhámos com atenção para os nossos documentos já existentes, para a proposta da NFGP e demais ideias apresentadas no passado e a partir daí formulámos o draft da nossa proposta. Esta proposta foi enviada e analisada por académicos e referências internacionais da MGF, seguindo-se ajustes e melhoramentos ao documento, até que o mesmo foi apresentado aos colégios e associações dos diferentes países europeus, que deram ainda o seu contributo. Finalmente, na Conferência da WONCA Europa de 2022, foi aprovado o documento final que sumaria os nossos valores fundamentais
Este documento consegue ser fiel à realidade de cada país europeu, sabendo-se das diferenças na prática da MGF ao longo do Velho Continente?
De facto, no próprio grupo de trabalho debatemos esta questão e foi reconhecido que existe uma considerável heterogeneidade. É por esse motivo, inclusive, que na letra do documento mantemos em paralelo as designações de General Practitioner e Family Doctor, ou seja Clínico Geral e Médico de Família, porque percebemos que em diferentes países o especialista em MGF pode ter designações díspares. Assim, tivemos o cuidado de produzir um documento que fosse abrangente. De qualquer modo, o que se procurou contemplar neste documento foram os valores da MGF que devem ser sempre mantidos e preservados, independentemente do contexto político, social ou organizacional que se vive em cada sociedade onde trabalham os colegas. Em boa verdade, o documento da WONCA Europa sobre os valores fundamentais da MGF é como um farol para todos os médicos de família (MF). Quando sentirmos que um destes valores está a ser colocado em causa, temos de nos levantar e erguer a voz em defesa da MGF, não só na perspetiva da defesa dos MF, mas sobretudo na defesa dos nossos pacientes, porque se tal acontecer é a qualidade dos cuidados de saúde prestados às populações que fica em xeque.
Seria importante que todos os colegas de MGF tivessem em linha de vista esta «tábua de valores» no seu consultório, para seu recurso, mas também enquanto esclarecimento para os doentes?
Sem dúvida que sim e gostaria muito que tal se tornasse uma realidade. Aliás, a versão internacional do documento foi projetada com um carácter apelativo (do ponto de vista de design e imagem) e vale mesmo a pena divulgar estes valores fundamentais da MGF junto das autoridades políticas, da sociedade em geral, da comunidade médica, de colegas de outras especialidades clínicas e dos pacientes. Muitas vezes nós, MF, somos alvo de certas opiniões negativas e desvalorização do nosso trabalho, por parte dos políticos e da comunidade em geral, devido a um desconhecimento profundo relativamente ao que representamos e aos valores que assumimos como os nossos. Este é um cenário ainda mais agravado pelo facto de as pessoas não perceberem, em muitas circunstâncias, que estes valores fundamentais surgem em benefício delas próprias. Dito isto, é essencial que façamos este trabalho de divulgação de cada um dos sete valores fundamentais ilustrados no documento. A título de exemplo, o documento refere a continuidade de cuidados, algo que a maioria das pessoas não tem presente como uma mais valia. Numa sociedade em que vivemos dos impulsos gerados instantaneamente, em que a população olha para os cuidados de saúde numa ótica consumista (à imagem de alguém que vai a um supermercado e extrai o que deseja de cada prateleira), são poucos os que interiorizam o valor para a sua saúde de uma relação de continuidade com o MF. Ora, no presente dispomos de estudos que nos comprovam que a continuidade de acesso a um MF diminui o risco de mortalidade.
Outro valor evidenciado no documento são os cuidados orientados pela ciência. Se transmitirmos aos utentes que a prática da MGF é baseada em método científico e que aquilo que é proposto, em termos de tratamentos e atividades preventivas, nasce da ciência e comprovadamente lhes traz mais benefício do que dano, então estaremos a dar-lhes tranquilidade e a defendê-los de ofertas que surgem no mundo mediático (carregadas de sérios riscos) e de estratégias da pseudociência.
Este é um documento que exigirá atualização a curto/médio prazo, ou que na sua perspetiva perdurará por muito tempo?
Acredito que este documento permanecerá mais ou menos inalterado por alguns anos e que, depois, conhecerá uma evolução similar à registada pela Definição Europeia de MGF, que passou por ligeiras e pontuais revisões. O mundo vai-se transformando e é inevitável que algumas mudanças se façam refletir na prática da MGF, pelo que é natural que existam retificações aqui e ali, à medida que a essência da MGF se vai adaptando aos tempos vividos pela sociedade. Contudo, a solidez destes valores irá perdurar e estas são bandeiras que é prioritário defender face ao que é mutável, neste caso os regimes políticos, as políticas de saúde, o contexto organizacional de exercício ou a opinião pública.