Após o ministro da Saúde ter afirmado em declarações aos media que não existe no presente “nenhuma boa razão para que muitos centros de saúde não possam fazer consultas de Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG)”, o presidente da APMGF, Nuno Jacinto, declarou na SIC Notícias que esta vontade do governante colide com factos fáceis de explicar junto da opinião pública: “temos de ter a noção de que a IVG, mesmo quando concretizada através de um medicamento, não se resume a passar uma receita e dizer à grávida para regressar a casa e tomar os comprimidos. Os médicos de família (MF) não têm formação de base para decidir se a IVG deve avançar através de medicamento ou de uma opção cirúrgica (…) também é necessária uma ecografia que permita datar a gravidez e isto é um problema, porque o acesso à ecografia em ambulatório e nos cuidados de saúde primários (CSP) é muito reduzido e em alguns locais do país nem sequer existe ecografia obstétrica convencionada. Por outro lado, perante as características da grávida, da gravidez e do próprio feto é preciso tomar uma decisão muito técnica e específica, que extravasa as competências habituais de um MF. Pode um MF fazer formação nesta área? Pode, mas nesse caso será sempre a exceção e não a regra”. Em complemento, Nuno Jacinto frisou que direcionar a realização de IVG para os CSP significaria dedicar mais tempo e recursos de equipas de saúde atualmente já no limite: “estamos a falar de milhares de consultas para este tipo de seguimento, fazer consultas prévias, consultas em que se operacionaliza a IVG e consultas de acompanhamento subsequentes, isto em unidades que estão sobrecarregadas, em locais onde faltam muitos MF e onde os que existem têm tanto trabalho que não lhes resta mais tempo para se dedicarem a outra tarefa. Na prática, estamos aqui perante uma das típicas situações em que procuramos resolver um problema «chutando» a questão para os MF, não lhes dando condições – técnicas, materiais e humanas – para que assumam essa missão”.
Já relativamente à opinião expressa por Manuel Pizarro de que as filas à porta dos centros de saúde durante as madrugadas são “uma realidade intolerável” no nosso país, o dirigente associativo concordou com o enunciado, mas lembrou que neste contexto é fundamental lançar uma pergunta: “o que é que o governo atual e os governos anteriores não têm feito para mudar esta situação? O que não têm feito é cativar os MF para permanecerem no Serviço Nacional de Saúde (SNS). O Sr. Ministro fala – e muito bem – do pico de reformas que estamos a viver (que era há muito previsível e não foi devidamente acautelado). Mas o problema é que ao longo dos últimos anos também não fomos capazes de atrair e fixar os colegas mais novos que formamos com enorme qualidade e que todos os países lá fora querem, assim como o setor privado, profissionais que não conseguimos fixar no SNS”. O dirigente associativo frisou a circunstância de existirem hoje mais de 1,6 milhões de portugueses sem MF atribuído e unidades dos CSP sem um único médico no quadro de pessoal a trabalhar a tempo inteiro, um panorama que jamais será transformado apenas com palavras, “sendo preciso algo mais para alterar tal realidade”.
Questionado sobre o que é exigido para que muitos MF ingressem (ou regressem) ao SNS, Nuno Jacinto destacou a necessidade de “valorização e respeito” pelo trabalho dos MF, valores traduzidos “por uma remuneração digna, um salário de base condizente com as tarefas e responsabilidades destes profissionais, não apenas uma cosmética que passa por aumentar cargas horárias e introduzir suplementos, tentando de forma artificial promover aumentos que vão chegar a muito poucos colegas”. O presidente da APMGF reivindicou, além de melhorias remuneratórias, outras componentes essenciais para a eficácia dos MF e das equipas com quem colaboram: “faltam condições de trabalho, instalações, equipamentos e listas de utentes adequadas. É bom saber que muitos MF em Portugal apresentam listas de 1900, 2000 utentes, número que torna impraticável a prestação de cuidados de saúde de qualidade. Isto numa altura em que sempre que surge uma necessidade não respondida pelo SNS alguém se lembra de colocar mais uma tarefa nos ombros dos MF. Isto não pode continuar a acontecer, porque se assim for teremos cada vez mais médicos a colocarem de parte o regresso ao SNS ou a nem sequer entrarem no mesmo, por entenderem não ser essa a melhor opção para a sua carreira”.