Doentes sem médico de família ou agudos… responsabilidade social, trunfo formativo, porta aberta para o abuso?

Contam-se entre os principais motivos para discussão pública corrente sobre o estado atual do Serviço Nacional de Saúde (SNS): o que fazer aos milhões de utentes sem médico de família (MF) atribuído e aos doentes agudos que, muitas vezes face a uma resposta ineficiente dos serviços, à falta de conhecimento sobre o sistema e suas vias de acesso ou pura indisciplina procuram erradamente as urgências hospitalares? E poderá o seu acompanhamento e apoio por parte de médicos em período de Internato ser uma mais-valia para os próprios profissionais, no seu percurso formativo? As duas problemáticas assumiram papel central na agenda do terceiro dia do 21º Encontro Nacional de Internos e Jovens Médicos de Família, em sessões organizadas pela Comissão de Internos de MGF de Lisboa e Vale do Tejo (LVT) e pela Comissão de Internos de MGF do Algarve.

No que respeita à questão do seguimento de utentes sem MF atribuído em período de internato e fora da lista do orientador, esta é uma prática já muito habitual em LVT, região do país com o maior número de utentes a descoberto. Procura-se, de certa forma, dar a resposta possível a uma população carenciada de cuidados e, por outro, permitir aos internos de MGF tomarem contacto com realidades que não conheceriam na sua unidade e equipa de saúde de referência (seguimento de migrantes, refugiados, desenvolvimento de skills no âmbito da prescrição social, etc.) com ganhos em termos de autonomia e de integração na comunidade. O padrão tornou-se tão comum que a Coordenação do Internato de MGF de LVT decidiu apresentar em maio de 2023 um «Guião de Pólos Formativos», o qual estipula regras para este tipo de experiências e procura evitar desvirtuamentos na formação. “Este guião vem trazer linhas orientadoras, propostas de organização, fazer uma reflexão sobre os desafios que estes pólos podem levantar e sugerir áreas de formação, que têm sempre de ir ao encontro das necessidades formativas dos internos, as quais podem estar relacionadas, por exemplo, com a Saúde Infantil, ou campos técnicos e específicos, como a pequena cirurgia ou a abordagem de doentes complexos”, explicou Susana Medeiros, diretora do Internato de MGF em Sintra. A participação nestes pólos por parte do interno é sempre voluntária, exige supervisão, calendarização, a presença de outros profissionais capacitados e a garantia de idoneidade formativa no local. O guião recentemente criado pela Coordenação de Internato de MGF de LVT serve apenas, de acordo com a diretora de Internato de MGF em Sintra, para salvaguardar os internos de alguma tentação das chefias: “a ideia da Coordenação passa por criar condições para que estes pólos formativos não sejam apenas atendimentos a utentes sem MF, onde se despejam os internos sem qualquer princípio de formação. Trata-se, pois, de um enquadramento, de uma proteção que nos possibilita dizer que este é um campo formativo válido, a ser concretizado dentro do horário do Internato”.

Mas serão, de facto, tão relevantes e únicas as oportunidades de aprendizagem vinculadas a estes pólos formativos? Alexandra Fernandes, impulsionadora da Via Verde Seixal, um dos vários projetos de via verde para utentes sem MF que ajudou a criar no seio do ACeS Almada/Seixal, dá um exemplo prático de um domínio em que a participação voluntária do interno lhe poderá trazer vantagens evidentes: “não sei se muitos colegas têm a facilidade, em USF de Modelo B, de fazerem domicílios em autonomia, ou se os orientadores tendem a fazê-lo, por serem remunerados”. Convidada a comentar se estas experiências não poderão ser usadas pela administração para tapar buracos uma vez mais com base nos recursos da MGF, Alexandra Fernandes mostrou-se convicta de que colegas que integram estes projetos o fazem na busca de metas mais elevadas: “no final deste ano teremos dois milhões de pessoas sem equipa de saúde familiar, um quinto da população portuguesa. A responsabilidade por estas pessoas não é dos internos, nem sequer apenas dos ACeS que cobrem a população, mas antes nacional. Dito isto, estamos todos a tentar ser parte da solução. Eu pessoalmente sinto uma parte dessa responsabilidade e foi por isso que sai da minha USF. Por esta ser uma responsabilidade que também é nossa é que tentámos inventar soluções que permitissem «fazer omeletas com os ovos disponíveis». Isto obriga a fazer coisas muito diferentes na unidade, a reorganizar os grupos profissionais no atendimento ou a forma como realizamos rastreios, por exemplo”.

Já Joana Marinho, coordenadora da USF Saúde Laranjeiro, explicou como a UCSP Santo António do Laranjeiro e o seu projeto Via Verde Laranjeiro (que garantia consulta no próprio dia aos utentes sem MF e acompanhamento regular aos doentes crónicos) se metamorfosearam, assumindo hoje a forma da USF Saúde Laranjeiro. Durante esse processo de crescimento, os internos de MGF envolvidos esforçaram-se muito, mas também obtiveram conquistas pessoais. “Tivemos uma experiência muito enriquecedora, diferente daquela que a generalidade dos MF conhece, já que a maioria se forma em «bolhas», USF com muitos anos, bem organizadas, listas de uma forma geral corretamente trabalhadas e utentes a quem não falta nada. Neste ambiente, deparámo-nos com algo completamente oposto, pessoas que não tiveram qualquer seguimento nos últimos anos, doentes crónicos descompensados, bem como patologias diversificadas, devido às diversas populações abrangidas pela nossa unidade. Assim, é muito compensador pegar nestas pessoas e famílias e trabalhá-las de raiz, colher uma história clínica completa e orientar os vários problemas de saúde”, declarou Joana Marinho.

A Comissão de Internos de MGF do Algarve preparou, por seu turno, uma sessão interativa com diversos casos clínicos retratando potenciais situações de doença aguda com que os colegas se podem confrontar, no quotidiano. Os participantes no Encontro votaram nas estratégias mais apropriadas para cada caso, numa área que promete ocupar mais do seu tempo no futuro, se levarmos em conta as obrigações expostas no novo Estatuto do SNS, que determina que os centros de saúde devem assegurar aos utentes respostas à doença aguda. Para além da exposição, votação e discussão dos casos clínicos, houve ainda tempo para alguns comentários interessantes sobre aspetos essenciais a que todos os profissionais devem prestar atenção, para não terem surpresas desagradáveis quando se deparam com situações de doença aguda na sua unidade. A este propósito, Pedro Tavares, médico interno de MGF na USF Esteva (ACeS Algarve Sotavento) recordou que é fundamental que os colegas ”procurem saber o que contém o carrinho de emergência da unidade e saberem utilizar o que está lá dentro”. Rita Paraíso, interna de MGF na USF Ria Formosa (ACeS Algarve Central) acrescentou neste contexto que infelizmente “muitos carrinhos de emergência têm medicação fora de validade. Foi o que verificámos após uma auditoria na nossa unidade, aliás”.

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