Que sentido é possível extrair de «Um, ninguém e cem mil», último romance de Luigi Pirandello datado de 1926 (e criado, portanto, no epílogo existencial do escritor e dramaturgo siciliano) que encerra a deliciosa história de Vitangelo Moscarda, do seu nariz imperfeito, posterior neurose e descoberta do grande mundo das identidades que carregamos dentro de nós? Esta é a tarefa que se apresenta aos participantes na próxima sessão do Clube de Leitura APMGF, agendada para 21 de fevereiro, pelas 21h00 e que terá como médico dinamizador Filipa Deveza Herdade. A participação no Clube de Leitura está sujeita a inscrição prévia, é gratuita para os sócios da APMGF e tem um custo de 35 euros para não sócios (valor que permite participar no ciclo integral). No final do ciclo, todos os participantes do Clube de Leitura que tenham assistido às sessões em direto receberão um diploma de participação entregue pela APMGF.
A obra do vencedor do Prémio Nobel da Literatura em 1934 é um ensaio filosófico (disfarçado) sobre a questão da identidade pessoal, a forte dúvida sobre a verdadeira equivalência entre quem somos para nós e quem somos para os outros, bem como sobre todos os “eus” que encerramos na nossa consciência e todas as manifestações que conseguimos exibir perante o universo exterior. Indagações personificadas pelo narrador, Vitangelo Moscarda, o qual percebe através de um inocente comentário da esposa que o seu nariz pende para a direita (doença, sentença ou querença?). Assim arranca a alucinante viagem do protagonista, que passo a passo questiona o conjunto dos fragmentos do seu ser e dos indícios de que é real e único, para si e aos olhos dos demais, até ceder em definitivo à loucura.
Se não teve a felicidade de ler a obra e a adivinha no vazio, pode tal percurso surgir-lhe como trágico, até doloroso, mas na verdade o espírito de Pirandello trata de transformar esta suposta descida ao inferno humano numa interessante narrativa dedicada à luta interna contra o absurdo de mudar o que não se conhece a fundo, o que é por natureza mutável, de braço dado com um espanto divertido que, ainda assim, nunca se abandona por completo à comédia.
“Li pela primeira vez este livro, há cerca de 15 anos, também no contexto de um clube de leitura. Na altura, a história prendeu-me logo nas suas primeiras 11 linhas, quando a personagem Vitangelo é confrontada com a ligeira inclinação do seu nariz, facto que até então ignorava. Lembro-me depois de me ter fascinado toda a reflexão que este episódio suscitou em Vitangelo e não tanto o enredo que se seguiu. Tendo agora que sugerir algo para outros leitores lerem, ocorreu-me esta obra pela possibilidade de a reler e de a discutir com colegas médicos, numa perspetiva literária e clínica”, explica Filipa Deveza Herdade.
A dinamizadora da sessão acrescenta que a análise clínica é algo que obviamente lhe interessa na obra, ainda que não seja este o único motivo de curiosidade: “é sempre impactante quando nos revemos em ideias que, embora aparentemente simples, nunca até então as lemos ou pensamos de forma tão clara. Sentimo-nos compreendidos e aprofundamos algo que já nos tinha ressoado. Já do ponto de vista clínico, a saúde mental está presente na minha atividade clínica diária e, não sendo a área da minha especialização, implica sempre novas aprendizagens”. Para Filipa Deveza Herdade, o livro encerra em si mesmo “hipóteses diagnósticas para os acontecimentos que são descritos. Pondo a Medicina de parte, penso que todos nós, em alguma altura, nos questionamos sobre o que Vitangelo reflete e nos tentamos ver noutra perspetiva”.
«Um, ninguém e cem mil» tem a virtude de fazer pensar durante muito tempo, qualidade reservada apenas aos grandes exercícios literários. Força-nos, a partir da reinvenção de um homem, a desconstruir o que era certo e a projetar ideias obscuras sobre nós mesmos. Espelho sobre espelho.