MGF e CSP estão numa encruzilhada organizacional que exige vigilância mas não deve desmoralizar ninguém

A quadragésima primeira edição do Encontro Nacional de MGF, que reúne aproximadamente 900 participantes em Albufeira, entrou em velocidade de cruzeiro e está a demonstrar a vitalidade da Medicina Geral e Familiar (MGF) no campo científico e técnico-profissional, pese embora os obstáculos enfrentados na atualidade pela especialidade e pelos cuidados de saúde primários (CSP) em Portugal.

Na cerimónia de abertura do evento, o presidente da APMGF convidou a audiência a refletir se existe vida para além da MGF, quer na perspetiva dos utentes, quer dos profissionais e do próprio sistema de saúde. Nuno Jacinto colocou o dedo na ferida ao ressalvar que muitos dos problemas de acesso de que se queixam os portugueses e muita da procura de cuidados que acaba frustrada à porta dos serviços de urgência seria contornada se a tutela ouvisse os argumentos da APMGF e de outras organizações do setor, que desde há muito apontaram o caminho para a fixação a longo prazo de médicos de família (MF) em todo o país e, em particular em áreas carenciadas, algo que não implica agrilhoar os colegas no final do internato de MGF, mas antes a adoção de medidas positivas: “a solução passa pelas propostas divulgadas há algum tempo atrás pela UEMO, como adequar a remuneração à complexidade e responsabilidade do MF, encontrar benefícios não financeiros para os profissionais, consolidar condições de trabalho seguras e com tolerância zero à violência, aumentar o tempo das consultas e limitar o número de contactos no mesmo dia de trabalho, organizar as listas de utentes em conformidade com indicadores de complexidade populacional e monitorizar tais indicadores, oferecer contextos laborais flexíveis e providenciar oportunidades para o desenvolvimento profissional”. Estas e outras estratégias para estimular o avanço da MGF e a integração otimizada dos seus representantes no SNS estão, aliás, contidas no livro “Um Novo Futuro para Medicina Geral e Familiar”, publicado pela APMGF, no qual “a Associação, para além de diagnosticar problemas, procura apontar novas soluções e evita resolver dificuldades com as receitas de sempre, que sabemos não serem válidas”. O presidente da APMGF concluiu as suas observações com a certeza de que haverá certamente vida para além da MGF; todavia, ninguém ambicionará um sistema de saúde em que a mesma esteja ausente ou desempenhe um papel marginal.

Em mensagem gravada enviada aos congressistas, o bastonário da Ordem dos Médicos, Carlos Cortes, elogiou o percurso feito pela MGF ao longo da história da nossa democracia e os seus triunfos, em termos clínicos e formativos, mas alertou para os perigos que espreitam nesta fase de incerteza: “as transformações que estão a ser introduzidas nos CSP preocupam-me. Sou favorável a um sistema de integração de cuidados, no qual os CSP estejam mais próximos e cooperantes com os cuidados hospitalares e em ligação com os cuidados continuados e o setor social. Porém, aquilo que eu não quero é que as mais valias obtidas pelos CSP ao longo dos anos e a sua reforma fossem coarctados pelos cuidados hospitalares”. O bastonário explicou que desde o início do ano tem “assistido a uma desarticulação completa dos CSP, sobre os quais recaem hoje sérias interrogações” e que o processo de reorganização do SNS revela ser “um trabalho feito em cima do joelho, precipitado, que não acautela as enormes conquistas que os médicos de família souberam trazer para a Medicina e para a sociedade portuguesa”.

Na conferência de abertura do Encontro Nacional, Jaime Correia de Sousa analisou a evolução da MGF e do Serviço Nacional de Saúde nos 50 anos de democracia e considerou que existem razões para “olhar juntos na mesma direção” – o lema da sua palestra. Contudo, o histórico da MGF não escamoteou o facto de sempre terem existido e continuarem a existir escolhos no percurso: “temos um aparelho de Estado muito habituado a funcionar num registo de comando/controlo, que praticamente não saiu da mesma fase de maturidade desde o 25 de Abril e que desconfia sistematicamente dos seus funcionários”. Para o também docente da Instituto de Investigação em Ciências da Vida e da Saúde da Escola de Medicina da Universidade do Minho, outro risco real é o que envolve a mudança em curso ao nível da integração de cuidados, já que “são muitos os desconfiam do modelo das ULS que nos foi imposto. Vai ser necessário muito empenho e sabedoria para continuar a manter a nossa matriz de prática nestas organizações complexas, centralistas e hospitalocêntricas”.

ULS não são o fim do mundo e podem ser influenciadas por dentro

As ULS foram inclusive um dos temas fortes do segundo dia de trabalhos no Encontro Nacional, com uma mesa redonda dedicada ao assunto e no seio da qual foi possível debater, sem tabus ou preconceitos, o que pode reservar o futuro aos médicos de família dentro desta forma de organização integrada de cuidados.

Nesta conversa aberta e descomplexada, José Luís Biscaia, MF aposentado, ex-diretor executivo do ACeS Baixo Mondego e membro da Missão para os Cuidados de Saúde Primários, deixou bem claro que mesmo com a desmultiplicação das ULS em território nacional e da aparente aposta do Ministério na integração e verticalização de cuidados, o modelo USF é irreversível, com a sua autonomia, accountability e performance guiada por resultados em saúde ajustados às realidades locais: “com mais de 600 USF em modelo B e um regime remuneratório diferente é melhor esquecer qualquer ideia de voltar atrás… agora não podemos é perder o que é essencial nas USF”. E tal objetivo, de defender a todo o custo os princípios basilares da reforma dos CSP pode e deve ser feito a partir de dentro, no seio das próprias ULS, por quem foi escolhido para cargos de referência, como explica José Luís Biscaia: “temos hoje 39 diretores clínicos para os CSP nas ULS que vieram da MGF e dos CSP, com estatuto equiparado a gestor público, integrados em conselhos de administração. Isto é um poder imenso! O que nos falta é criar uma rede colaborativa inteligente entre estas pessoas que nos permita fazer o trabalho que temos de fazer a partir de dentro do processo de reestruturação”.

Conhecido como o homem que apadrinhou e protegeu a execução da reforma dos CSP no início do século, António Correia de Campos mostrou em Albufeira que é importante ter uma perspetiva positiva sobre o que se passa no terreno e preferiu não entrar no grupo daqueles que veem a generalização das ULS como a machadada final no modelo USF ou o princípio da reversão de todas as melhorias a estas associadas: “é sempre possível as coisas piorarem ou recuarem, mas é ainda mais possível avançarem e como diz o poeta, as coisas avançam como uma bola colorida nas mãos de uma criança, porque o sonho comanda a vida. Apesar das guerras, da inflação e de todas as dificuldades, há sempre razão para ter esperança”.

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