O 41º Encontro Nacional de MGF volta a provar ser o espaço privilegiado para debate dentro da Medicina Familiar e dos CSP, ao integrar todos os temas que realmente interessam ao médico de família no presente, mesmo que por vezes estes possam ser incómodos, polémicos ou geradores de cisões, por colocarem diferentes formas de pensar em confronto. Um destes tópicos é o desenvolvimento do novo regime remuneratório das USF, o qual encerra ainda muitas dúvidas sobre a sua aplicabilidade, regras e impacto nas equipas de saúde e na retribuição dos profissionais.
A este propósito, o economista da saúde Pedro Pita Barros sublinha que o novo regime remuneratório representa “sobretudo uma alteração de parâmetros de algo que já existia, ou seja, de mecanismos de incentivo ao desempenho. Tais mecanismos vão provavelmente ficar mais complicados agora, mais complexos de entender. Não se trata de uma mudança radical nos princípios, mas antes de uma mudança de complexidade que pode encerrar em si problemas, por exigir esforço de clarificação e discussão”.
O também docente da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa reforça que o mais importante, por agora, é conseguir “passar o ano de 2024 com alguma calma, permitindo a ambos os lados perceberem como atuam os mecanismos. Isto é, as pessoas que trabalham nos CSP vão poder acompanhar esta transformação no sentido de um novo modelo de desempenho, enquanto em simultâneo se integram em ULS, precisando pois de tempo de ajustamento. Do outro lado, de quem assume a decisão pública, será preciso determinar a velocidade correta para avançar com a utilização destes novos mecanismos de incentivos e, no campo das ULS, será fundamental estabelecer dentro de cada ULS como se promoverá a integração harmoniosa dos modos de funcionamento dos CSP e da parte hospitalar. Instrumentos para conseguir este objetivo eu julgo que existem, mas se as partes envolvidas vão ter a sagacidade de encontrar o melhor modo de o fazer, teremos de esperar para ver. No final, estou convencido de que a boa vontade de todos possibilitará que daqui a dois ou três anos o sistema esteja a funcionar adequadamente”.
Médicos de família podem encontrar satisfação profissional fora do SNS
A análise dos principais desafios e oportunidades com que se confrontam os especialistas em MGF no setor privado foi outro dos «pratos fortes» do terceiro dia de trabalhos no Encontro Nacional. Ana Luís Pereira, médica de família que trabalhou primeiro no SNS, depois no setor privado e é hoje CEO da HSC Healthy Smart Cities, empresa dedicada ao desenho de soluções digitais de governação clínica, comunitárias e focadas na promoção da saúde, relembrou o que a fez abandonar o SNS e procurar outras paragens: “gastava muito tempo com tarefas que não eram médicas e que podiam estar a cargo de outras profissões, não conseguia vislumbrar como seria a minha vida profissional daí a vinte anos e muito menos imaginar que ficaria ali a fazer as mesmas coisas nas duas décadas seguintes”. Esta médica requalificou-se, obtendo formação no domínio da gestão e saúde digital e percebeu que poderia ser uma valia enquanto elo de ligação entre empresas que desenvolviam soluções tecnológicas para a prestação de cuidados e os serviços clínicos, já que “existia uma grande desconexão entre estas duas realidades”.
Na atualidade, Ana Luís Pereira sente-se recompensada pelas suas decisões, antes de mais por no âmbito da construção da sua startup ter “um dia a dia muito confortável, sem uma rotina e um horário rígidos”, algo que parece pesar sobre muitos médicos de família ligados ao SNS.
IA na consulta do médico de família: em que ponto estamos?
É, sem dúvida, um dos mais fascinantes e promissores domínios de evolução da Medicina e da prestação de cuidados ao doente; o uso da inteligência artificial (IA) no apoio à atividade clínica. De tal maneira é apelativa esta problemática que a sessão focada na mesma foi uma das mais participadas em todo o Encontro Nacional. Daniel Beirão (médico de Medicina Geral e Familiar, diretor clínico adjunto do Hospital da Luz Guimarães e colaborador do Grupo de Estudos de Saúde Digital da APMGF) ressalvou, no entanto, que nem todas as soluções de IA são iguais e merecem abordagem similar, havendo casos e modelos que não necessitam de grande regulamentação e podem ser usados pelos médicos no dia-a-dia, com tranquilidade, enquanto outros exigem, efetivamente, um maior grau de capacitação do doente, partilha de informação com o mesmo e criação de regras escrupulosas que presidam à sua utilização, com vista a evitar abusos, fuga de dados sensíveis ou atos médicos desadequados. Para Daniel Beirão, o recurso a IA na consulta deve ser precedido de todo um trabalho prévio feito com o doente que nem deve passar pelos médicos: “é essencial que seja feita uma determinada literacia em saúde direcionada para os beneficiários, doentes, clientes ou utentes, como os quisermos chamar, antes da consulta. Não é expectável que sejamos nós a despender parte da consulta a explicar ao utente um consentimento informado no qual lhe é dito quais os riscos de recorrer à IA. Este é um trabalho para as direções de marketing das organizações de saúde”.
Já Alexandra Neves, especialista em dados e inteligência artificial na Microsoft, deixou bem claro que uma prioridade que não pode ser empurrada para segundo plano, no que toca à IA, é o estabelecimento firme de salvaguardas de uso responsável: “é muito importante continuarmos a falar de responsible AI. Tudo aquilo que é feito tem de seguir certos standards e no caso da Microsoft e da sua plataforma Azure, por exemplo, todos os algoritmos feitos em IA têm de obedecer a determinados padrões, Se não seguirem tais padrões, não são lançados para o mercado e levanta-se um conjunto de red flags que obrigam os concetores a olhar para o que está errado e a efetivar tal escrutínio. Isto porque estamos a falar de uma das áreas que mais justifica ser regulamentada”.