Catarina Carvalho – Consultório PéPedal: “É muito importante explorar outros cenários para o aconselhamento em saúde, além do clássico gabinete médico”

Integrado no PéPedal – um programa de mobilidade desenhado para as escolas pela organização não governamental Ciclaveiro, com o intuito de promover e incentivar as deslocações ativas na região de Aveiro – o Consultório Médico PéPedal é um exemplo paradigmático de como as equipas dos cuidados de saúde primários no nosso país podem contribuir para o aumento do número futuro de cidadãos ativos, saudáveis e informados, com intervenções criativas e precoces, em meio escolar. Nesta entrevista, a médica de família na USF Flor de Sal Catarina Carvalho, uma das principais dinamizadoras do projeto, explica-nos o que há de inovador nesta ideia e como as crianças têm respondido de modo positivo ao desafio de serem verdadeiros agentes da mudança, pequenos embaixadores do mobilidade ativa.

 

Como surgiu esta vertente do projeto PéPedal e que objetivos procura atingir?

Catarina Carvalho – Em 2022, a Ciclaveiro organizou um grupo de trabalho que reúne médicos, investigadores, professores e consultores nas áreas da saúde, ambiente e mobilidade. De um propósito comum – a promoção da mobilidade saudável e sustentável na cidade de Aveiro – e de uma troca de ideias muito profícua, resultou uma iniciativa focada nas crianças como excelentes aprendizes e motores de mudança sociais. A inclusão no projeto de uma vertente dinamizada por profissionais de saúde foi sugerida por elementos da direção da associação e fez muito sentido para todo o grupo, dada a enorme relevância da mobilidade ativa para a saúde do indivíduo e da comunidade e o treino que os profissionais de saúde têm para atos de avaliação e aconselhamento.

De que forma o Consultório PéPedal se articula e complementa as outras dimensões do projeto PéPedal?

O programa PéPedal da Ciclaveiro foi desenhado para envolver de forma ativa e colaborativa toda a comunidade escolar, ou seja, alunos, professores, assistentes operacionais e famílias. Abrange quatro dimensões. A primeira passa por sensibilizar para a importância da mobilidade ativa na saúde física, mental e social das crianças, da sua família e sua comunidade, no Consultório PéPedal. A segunda envolve a atividade de ensinar a andar de bicicleta ou melhorar a prática, tanto na escola, através da implementação do projeto “Desporto Escolar Sobre Rodas” da Direção Geral da Educação, como nas sessões mensais abertas a toda a comunidade “Academia Mini Rodas”, da Ciclaveiro.

Pretende ainda incentivar a transição para formas de mobilidade ativa pela organização de “Comboios PéPedal”, com o apoio e coordenação das associações de pais de cada uma das escolas abrangidas. Ao aderirem, os alunos recebem um “Passe Escolar PéPedal” que validam cada vez que se juntam a um dos “comboios” a pé ou de bicicleta, cujo itinerário percorre parte da cidade e termina na respetiva escola. Esse passe vai dar-lhes acesso a um conjunto de benefícios com entidades locais parceiras, consoante o número de viagens que fizeram no “comboio”. Por fim, procura celebrar coletivamente as conquistas feitas por toda a comunidade escolar num Ciclo-Passeio.

O que faz exatamente a equipa que visita os estabelecimentos escolares?

O Consultório PéPedal funciona num espaço escolar reservado para esse fim, escolhido pelo docente coordenador de cada escola em conjunto com um elemento da direção da Ciclaveiro – um laboratório, uma sala, uma biblioteca… Nesse espaço, os elementos da equipa clínica consultam individualmente cada criança, avaliando peso, altura e índice de massa corporal, as modalidades atuais de transporte, os constrangimentos e oportunidades para a adoção de hábitos de mobilidade mais ativos no seu quotidiano e explorando em conjunto com a criança os benefícios dessa transição, tanto para a saúde como para o ambiente, não descurando aspetos de segurança. Para facilitar o estabelecimento de uma relação de confiança e um ambiente de curiosidade, os profissionais apresentam-se de bata ou farda, identificados com um crachá e fazem-se acompanhar de vários equipamentos e acessórios que podem ser manipulados pelas crianças atendidas no Consultório: bicicleta e bomba para encher um pneu; acessórios como corrente, refletor, selim, câmara de ar, remendos…

No final do atendimento, a criança fica com uma prescrição individualizada em papel, a Receita PéPedal, que leva para casa para recordação e para facilitar o diálogo com a família sobre o que aprendeu e o que gostaria de aplicar no seu dia-a-dia.

Quantos profissionais de saúde estão envolvidos nas visitas, que missão assumem e como são escolhidos?

A equipa clínica é composta por 12 médicos especialistas e internos de Medicina Geral e Familiar, 5 médicos internos de Pediatria, 5 médicos internos de Formação Geral, 6 enfermeiros e 2 fisioterapeutas com interesse especial na infância e na promoção de estilos de vida saudáveis. Alguns já eram sócios da Ciclaveiro e estavam envolvidos no projeto desde a sua génese, outros foram convidados por contacto entre colegas. Alguns colegas de Medicina Geral e Familiar foram convidados numa reunião formativa na qual apresentei o projeto. O principal critério de admissão na equipa foi a motivação, porque se trata de um trabalho voluntário que exige tempo, empenho e responsabilidade.

Cada elemento clínico propôs-se a colaborar no Projeto pelo menos durante uma manhã ou uma tarde durante o período em que o Consultório funciona (em 2023/24 foram planeadas, no total, 4 semanas completas distribuídas por diferentes escolas do ensino pré-escolar e 1º ciclo). Todos eles receberam os documentos estruturantes do projeto por e-mail, participaram numa reunião preparatória para descrição do Consultório PéPedal, esclarecimento de dúvidas, registo de sugestões e treino na forma de roleplay. Durante o ano letivo, os elementos da equipa clínica foram colaborando no sentido da melhoria contínua do funcionamento do Consultório PéPedal, de forma presencial e pelo uso das tecnologias de comunicação.

Quantas escolas já visitaram e como tem sido a reação dos alunos e educadores?

Visitámos, até ao momento, quatro escolas. Nestas escolas, com o valiosa colaboração dos professores e educadores que foram contextualizando a nossa visita junto dos alunos e dos pais e integrando o tema nas suas atividades letivas, aconselhámos 805 alunos com idades compreendidas entre os 3 e os 10 anos, os quais aderiram com entusiasmo ao Consultório e nos trouxeram as suas realidades. Numa atitude característica da infância, foram muito espontâneas na expressão dos seus pontos de vista, apresentação dos conhecimentos prévios sobre o assunto e atenção às ideias que trazíamos ao diálogo. Foi notória na maioria dos alunos uma grande abertura às propostas feitas no sentido de ultrapassar obstáculos sentidos no quotidiano ou de criar oportunidades de mobilidade ativa ainda não exploradas. Sabemos que o assunto foi também discutido nas salas de aula com os professores, nos intervalos com os colegas e em casa com as famílias. Acompanhámos com satisfação o número crescente de crianças a aderir aos “Comboios PéPedal”. No final do programa, serão recolhidos dados para avaliação do programa e teremos dados mais objetivos sobre o sucesso do nosso trabalho. Claro que num horizonte temporal mais alargado precisaremos de um forte enquadramento a todos os níveis para que este trabalho não tenha sido em vão e que estas crianças e respetivas famílias se mantenham motivadas e com condições para se poderem deslocar de forma ativa no seu quotidiano.

Recorda algum episódio em especial que a tenha marcado, no que respeita à participação das crianças?

Todos os momentos foram maravilhosos. Mas posso trazer a história de uma menina que na sua “consulta” referia com muita alegria o facto de ter possibilidade de ir a pé para a escola com a avó porque o seu pai é padeiro, pelo que tem de a deixar na casa da avó às 6h30 da manhã. Esta menina explicou que não se junta ao “Comboio PéPedal” porque tem medo que seja demasiado rápido para a avó e não quer que ela perca a vontade de continuar a levá-la a pé.

Existem áreas de promoção e educação para a saúde que ainda não exploraram durante as vossas incursões e que gostariam de potenciar no futuro?

O foco deste projeto é especificamente a mobilidade ativa. Imagino múltiplas outras áreas em que poderíamos intervir. O médico de família conhece muito bem os problemas da comunidade e é perito em comunicação, o que o coloca numa posição privilegiada para influenciar mudanças nos determinantes de saúde na comunidade em que se insere. O que identifico como obstáculo é o contexto atual no Serviço Nacional de Saúde, em que apenas as equipas de Saúde Pública e as Unidades de Cuidados na Comunidade têm condições de trabalho minimamente favoráveis à intervenção consistente na comunidade. O médico de família, que maioritariamente trabalha em Unidades de Saúde Familiar ou em Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados, vê todo o seu tempo canalizado para as atividades que vão ao encontro das necessidades expressas da sua lista de utentes (e das listas sem médico que o rodeiam) e da contratualização de indicadores de saúde mais orientados para os cuidados individuais. Não sobra tempo, nem energia, para colaborar nas tão necessárias ações de promoção de saúde, em colaboração com outras equipas e instituições, para ir ao encontro da competência nuclear do Médico de Família elencada explicitamente na árvore da WONCA: “Orientação comunitária”.

Diria que este é um bom exemplo de projetos desenvolvidos na comunidade com capacidade para criar novas gerações de cidadãos mais capacitados, do ponto de vista dos estilos de vida saudáveis?

Sem dúvida. A literacia em saúde, fulcral para melhorar a saúde do indivíduo e da população, inclui este tipo de conhecimento e motivação que veiculamos no Projeto PéPedal. Considero que é muito importante explorar outros cenários para o aconselhamento em saúde, além do clássico gabinete médico em unidade de saúde, otimizando a comunicação e a relação terapêutica. Além disso, a colaboração entre profissionais de diversas áreas na conceção e desenvolvimento de projetos comunitários parece-me resultar em inovação, aumento da efetividade e transversalidade nos ganhos atingidos.

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