Desassombro emocional

A publicação de «Uma paixão simples», em 1991, gerou em França uma onda de sobressalto hipócrita, de afronta mesmo, por estar em causa supostamente a ideia de uma mulher que se degrada em idade respeitável e se abandona nos braços de um amante ocasional. Mas Annie Ernaux declarou na altura com toda a clareza: “as coisas ditas neste livro o tão incríveis e escandalosas que me devem obrigar a procurar refúgio? Não o creio… São coisas que muitas mulheres e muitos homens conheceram felizmente nas suas vidas”. A obra, que deixou uma importante marca na literatura francesa das últimas décadas, será analisada na próxima sessão do Clube de Leitura APMGF, agendada para 8 de julho, pelas 21h00 e que terá como dinamizadores o médico de família João Ramires, a psicóloga clínica Rita Correia e a agente literária e publisher Rita Fazenda. A participação no Clube de Leitura está sujeita a inscrição prévia, é gratuita para os sócios da APMGF e tem um custo de 35 euros para não sócios (valor que permite participar no ciclo integral). No final do ciclo, todos os participantes do Clube de Leitura que tenham assistido às sessões em direto receberão um diploma de participação entregue pela APMGF.

Segundo João Ramires, a escolha de «Uma paixão simples» para o Clube de Leitura APMGF cumpre vários objetivos: “em primeiro lugar é uma autora francesa, o que nos permite fazer uma homenagem à colega Pascale. A escritora recebeu o Prémio Nobel, que me pareceu interessante para apresentar aos colegas que possam não conhecer a sua obra e, por outro lado, a paixão é um tema de que gosto. Por último, mas não menos importante, é um livro pequeno e que se lê num dia, pelo que todos os participantes do Clube de Leitura conseguirão lê-lo antes da sessão”.

Já de acordo com Rita Correia, Annie Ernaux, “para nos envolver na história que é sua e nos transmitir a avalanche emocional e as consequências físicas, psicológicas, cognitivas e mesmo sociais que esta tem nela, usa um discurso honesto, cru, direto. Mas ao mesmo tempo, muitas vezes consegue um certo distanciamento que facilita um processo de instrospeção e análise ao seu comportamento, fazendo uso de uma narrativa mais reflexiva sobre o desejo, o papel da mulher, o amor”.

Na ótica desta psicóloga, “não há dúvida de que é particularmente interessante conhecer a perspetiva em nome pessoal das consequências de uma paixão na vida de alguém. E alguém que, apesar de ter nascido numa família modesta, é uma pessoa culta, professora numa universidade, Prémio Nobel da Literatura, ícone para muitas jovens na afirmação das mulheres numa sociedade de domínio masculino. Preconceito nosso, talvez meu, poder pensar que a obsessão, a dependência do outro ao ponto de a vida parecer estar reduzida ao outro, em que viver é com e para o outro numa dinâmica unilateral (embora não tenhamos conhecimento da vivência do outro), acontecem a pessoas com menos «ferramentas» pessoais e sociais para atenuar o impacto de uma paixão. O que se revelou para mim particularmente interessante foram vários aspetos, mais do que as próprias consequências psicológicas de uma paixão: a capacidade da autora em fazer-nos sentir a sua experiência subjetiva do desejo e da paixão;  como esta capacidade mobilizou as minhas próprias atitudes e crenças (que como psicóloga deveriam estar sempre sob escrutínio pessoal);  a importância de «despatologizar», por vezes, as emoções intensas, exacerbadas e de certa forma incapacitantes, pois estas podem ser integradas na nossa história, reparadas e assumidas como um privilégio ao alcance só de alguns”.

Na realidade, «Uma paixão simples» remete para tudo menos simplicidade. Trata-se de um livro autobiográfico, construído a partir das memórias de um caso amoroso e obsessivo da autora com um homem casado e contraditório, parte tratado semiótico, parte romance factual, que ganha fulgor com os sucessivos altos e baixos da narrativa. Assume e – até certo ponto consagra – o comportamento enlouquecido e semi-pueril que pode surgir nas relações humanas em qualquer idade, mas destaca-se sobretudo pela inteligência com que envolve os detalhes relatados numa forma literária tensa, com linguagem desafiadora e por vezes quase desprovida de emoção.

Nascida em 1940, na Normandia, a vencedora do Prémio Nobel da Literatura em 2022 é um vulto um tanto ao quanto controverso das artes francesas. Celebrizou-se ao criar histórias de enorme cunho pessoal, que rasgam barreiras culturais e procuram elevar das trincheiras do tabu assuntos incómodos como o aborto, as experiências extraconjugais ou a violação. Inconformidades sociais marinadas em sentimentos de vergonha e alienação, com tempero gaulês de profunda desigualdade e incompreensão entre classes.

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