A APMGF deu o tiro de partida no seu ciclo de debates intitulado «Para além da Medicina: ao encontro das humanidades», com a sessão «Poesia para uso tópico», no dia 10 de julho, nas instalações da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP). A sessão em causa foi moderada por Sofia Baptista (médica de família na ULS Santo António, professora universitária na FMUP e anfitriã do podcast «M80 Mala Médica», na rádio M80). Participaram ativamente na estreia do ciclo de debates Francisca Camelo (diseuse, poeta e psicóloga clínica) e Inês Homem de Melo (psiquiatra, cantora e finalista do Festival da Canção em 2022). Francisca Camelo recitou poesia – com destaque para Nuno Júdice e o seu «Poema de amor para uso tópico», testemunho lírico que ajudou a batizar a sessão – e Inês Homem de Melo cantou, como seria de esperar, mas acima de tudo as duas convidadas ajudaram os presentes a perceber que os frutos da criação artística humana devem sempre estar muito próximos de quem cuida, porque eles próprios têm poderes regenerativos.
Este ciclo foi pensado com intuito de promover encontros/fóruns interdisciplinares entre profissionais da área da medicina e saúde com personalidades das ciências sociais e humanas, para explorar as intersecções entre as perspetivas médicas e humanísticas, permitindo compreender a saúde de forma mais profunda e abrangente.
No âmbito da primeira sessão e das confluências entre poesia e os benefícios da mesma para quem é cuidado e para quem cuida, Francisca Camelo lembrou que “o que nos salva é a Medicina, a ação social, a psicoterapia, a nossa comunidade social e afetiva. No entanto, no que toca a instrumentos que podem favorecer a nossa forma de gerir emoções, reestruturar uma narrativa, a poesia pode ser uma ferramenta poderosa, mais poderosa do que a leitura da ficção. Isto porque há uma característica muito particular na poesia, o uso da metáfora (…) a metáfora vai às sensações, quando digo que senti o cheiro da nuvem, estou a abrir-me à possibilidade de sensações que me surgem, na realidade ou na minha imaginação, que depois componho no papel. Mas este estar atento às sensações é uma via para estarmos atentos às emoções. Com adultos, muito do meu trabalho como psicoterapeuta é alertar para uma biblioteca de emoções e para importância de estarmos atentos ao que o corpo nos diz sobre as nossas emoções”.
Por outro lado, para a diseuse “numa sociedade tão cansada como a nossa, veloz e carnívora, só o exercício de pararmos e deitarmos para o papel qualquer tipo de perspetiva sobre a nossa relação com o mundo é um ato de auto-cuidado”.
A psiquiatra Inês Homem de Melo concorda e admitiu mesmo na sessão que ultimamente tem estado muito alerta na sua consulta para este temática: “no mundo dos adultos, a psicoterapia passa muito por tentar levar a pessoa a reencontrar-se com uma linguagem das emoções, mais infantil, se quisermos, levar a pessoa a ser mais espontânea e a levar-se menos a sério, porque tal lhe permitirá aceder ao que está a sentir”. No que respeita à singularidade da poesia (seja ela integrada numa canção ou não), é importante também reforçar, segundo a cantora/psiquiatra, o impacto que a mesma têm do ponto de vista neurológico: “a área do cérebro que se ilumina mais consistentemente durante a leitura da poesia não é a área das palavras, mas sim a do prazer”.
Inês Homem de Melo tem por hábito, na sua prática clínica, prescrever a alguns dos seus doentes poemas musicados que reflitam o contexto em que vivem e explica porquê: “tal está relacionado com facto de as pessoas que apresentam sofrimento mental pensarem, regra geral, que são as únicas pessoas à face da terra que têm aquele tipo específico de sofrimento, sentindo-se pois ridículas, desoladas, alienígenas. Assim, quando a pessoa lê um poema ou ouve o poema musicado que retrata exatamente aquilo porque está a passar, identifica-se e tal tem um grande valor terapêutico (…) Neste momento, estou a construir um pequeno cardápio de canções que possa lançar para estes doentes”.
Já Sofia Baptista, recorrendo à sua experiência pessoal, salientou que a ligação das pessoas à poesia e a capacidade para extrair dela elementos transformadores e positivos estão dependentes do momento em que se vive: “a poesia não nos salva, per se, porque temos de estar predispostos a ser salvos por ela. Eu já fui salva muitas vezes pela poesia, nos momentos mais difíceis”.