(Continuação – Newsletter GEsPal nº 5)

 

3. Então o que é a espiritualidade? Consideremos sobretudo a chamada espiritualidade intrínseca. J. C. Bermejo, um dos investigadores mais conhecidos nesta área, assina as afirmações seguintes: a espiritualidade é a consciência do mundo interior; é a capacidade de tornar conscientes os processos interiores, ser capazes de verbaliza-los, de visualizar o futuro; é abertura ao mistério, ou seja, à experiência de fome de silêncio e de solidão, de interpretar a profunda insatisfação pessoal, de ler o tempo subjetivo; é o reconhecimento do sagrado e do valioso, ou seja, da capacidade de compreender as questões últimas, de descobrir os valores (justiça, verdade, dignidade, vida…); é desenvolver escalas de valores, renunciar a um em função de outros; é responder aos mistérios da vida tais como a beleza, o sofrimento, a morte, o amor; é a construção de um conjunto de crenças coerentes, ou seja, a elaboração das crenças que todos temos, a capacidade de identificá-las, de matizá-las e torná-las razoáveis; é a vinculação afetiva, ou seja, o tecido profundo da comunicação verbal e não verbal, a intimidade emocional consigo mesmo e com os outros, o uso dos sentimentos como fonte de compromisso, a capacidade de ensinar a viver ruturas sem destruir os outros ou a si mesmo, o sentido de pertença que gera compromisso ético… Parece muito subjetivo? Nesta área há muita matéria a integrar no cuidar, já sedimentada em estudos internacionais; dúzias de instrumentos de diagnóstico espiritual validados; teses de doutoramento; escalas de avaliação do sofrimento espiritual e religioso; esquemas para a anamnese espiritual; correlações com temas como a esperança, o coping, a saúde física e a psicologia; grupos de trabalho universitário, revisões de literatura, metanálises, estudos sobre inteligência espiritual. Poderíamos ainda considerar as variantes da espiritualidade: sem deus, com Deus (com e sem religião) e contra deus. Multidisciplinariedade, interdisciplinaridade, holismo, dignidade, cuidados integrais: palavras que todos subscrevemos e desejamos reais.

4. A espiritualidade é boa para a saúde? Depende, naturalmente. Muitas vezes é fonte de conflito interno. Podendo ser reconhecida em todas as biografias, precisa, por isso mesmo, ser gerida por profissionais com conhecimento e treino (com temas que poderiam integrar os curricula dos cursos de saúde, facto que não acontece em Portugal). A ter efeito negativo na saúde, precisa igualmente ser considerada. A tolerância passiva destes cuidados é obstrução ativa de biólogos. Os cuidados paliativos, teimosamente, tomaram nome de pallium, de pálio, objeto religioso que é um manto, um abraço, com que se acarinha e envolve o sacramento maior na religião católica. Fomentar cuidados espirituais e, para isso, saber manusear ferramentas da espiritualidade é entrar em contato com a saúde biográfica (e com as condicionantes da saúde) e com as construções de sentido para a vida dos profissionais, dos doentes e do seu entorno. Para bem de todos, prevenindo, curando e reabilitando a dignidade de cada pessoa.