Amigas desde a faculdade e agora a aprender Medicina Geral e Familiar no Porto, Lisboa e na Ilha de São Miguel, nos Açores. Partilhámos desde cedo a vontade de conhecer a prática de Medicina Geral e Familiar fora de fronteiras portuguesas, pelo que, em setembro de 2023, decidimos rumar juntas até à Ilha de São Tomé, em São Tomé e Príncipe.
São Tomé é uma das ilhas de São Tomé e Príncipe, país localizado na costa equatorial ocidental de África Central. O país apresenta uma população estimada de 220.372 habitantes e a esperança média de vida é de 66,8 anos, muito inferior à média portuguesa.
As diferenças entre São Tomé e Portugal são marcadas e era uma realidade para a qual não estávamos completamente preparadas. Estima-se que um terço da população viva abaixo da linha de pobreza internacional e isso traduz-se em condições de vida precárias e saúde não acessível a toda a população.
O sistema de saúde nacional assenta numa rede de Centros de Saúde localizada na sede dos distritos e Postos de Saúde, que são extensões dos centros de saúde, onde se desloca periodicamente um médico e onde se encontra um profissional de enfermagem permanentemente. Apesar da sua estrutura cobrir praticamente todo o território nacional, a maioria das unidades do Serviço Nacional de Saúde funciona em condições precárias, por deterioração das instalações, falta de equipamentos e medicamentos e carência de recursos humanos.
O nosso estágio decorreu na região centro, no Centro Policlínico de Água Grande e no Edifício do Programa Materno-Infantil. Durante a formação tivemos oportunidade de acompanhar médicos, enfermeiros e agentes da comunidade na sua prática diária, nomeadamente no Serviço de Urgência, Consulta Programada de Adulto, Consulta Programada de Saúde Infantil, Saúde Materna, Planeamento Familiar e ainda nas Visitas de Campo, ações de proximidade com o objetivo de sensibilizar e rastrear a população para as principais doenças infetocontagiosas. Estas atividades integram os Programas Nacionais que existem nesse âmbito e que visam o combate a tuberculose, paludismo, VIH e promoção da vacinação.
Há vários aspetos que impactam de forma importante a prática de cuidados de saúde primários e que são marcadamente diferentes da nossa realidade. A começar pela orientação para a queixa que motiva a vinda à consulta e pouco para a prevenção, seguimento e vigilância de doenças crónicas. As consultas são de iniciativa do utente, no próprio dia ou agendadas com uma antecedência que não vai além de uma semana, o que leva a que na sua maioria se aborde sintomatologia aguda ou patologia crónica descompensada. O sistema de registo de dados clínicos informatizado está paulatinamente a ser implementado, mas para já predominam os processos clínicos individuais em papel, pouco sistematizados, incompletos e por vezes difíceis de encontrar a tempo da consulta. Não há também um sistema de prescrição de exames complementares de diagnóstico ou de prescrição de medicamentos, com todos os constrangimentos que isso acarreta.
O contexto socioeconómico do país obviamente que se faz sentir no acesso à saúde, a vários níveis. Desde a dificuldade em se dirigir aos postos de saúde por ausência de meios de transporte próprios, de rede de transportes públicos e carência económica. À carência de exames complementares de diagnóstico no país, mesmo em prestadores privados e ainda a frequente rutura de stock de medicamentos, à sua inacessibilidade pelo custo e ausência de apoios estatais na sua aquisição, através da comparticipação parcial ou total, como acontece em Portugal. Por isso mesmo, o recurso a plantas é uma prática corrente e integra habitualmente o plano terapêutico. Pode não ter lugar nas recomendações mais atuais, mas vai ao encontro das necessidades e crenças do doente, e essa é uma lição muito prática que trazemos de São Tomé.
Há uma notória preocupação com a vigilância das populações vulneráveis, grávidas e crianças. O país conta com um programa de vacinação e um programa de vigilância de saúde materna e saúde infantil, com consultas programadas regulares e registo em boletim próprio, semelhante ao que usamos no nosso país. Uma importante parte desta atividade assistencial é praticada pelos profissionais de enfermagem, sendo os doentes orientados para um médico na presença de alterações. Na área do Planeamento Familiar existem já diversos métodos contracetivos disponíveis gratuitamente, sendo administrados ou aplicados pela equipa de enfermagem, e o seu uso monitorizado através de um boletim dedicado.
Estão a ser aplicados esforços para que esta organização e planeamento se estenda a área da saúde do adulto e vigilância das doenças crónicas mais prevalentes, e os profissionais esperam que o sistema de registos clínicos informático com agenda venha facilitar esta transição, apesar de também existirem importantes barreiras culturais, por parte dos utentes.
Os médicos em São Tomé costumam dizer que fazem limonada sem limões, e percebemos o que querem dizer com isso. Em Portugal estamos habituados a uma Medicina que nos permite optar entre uma vasta gama de meios complementares de diagnóstico e opções farmacológicas. Em São Tomé tal não acontece. Os recursos são limitados, pelo que a prática clínica tem de assentar as suas bases numa anamnese completa, exame objetivo detalhado e um pouco de intuição.
Saindo da componente médica e falando-vos um pouco da restante experiência. São Tomé é uma ilha quente. Não falamos só de calor, falamos das pessoas. Há uma simpatia, uma disponibilidade e uma vontade de nos acolher. Se temos um problema no carro, um minuto depois temos cinco são-tomenses ao nosso lado a resolver o problema. O clima é quente e tropical. As praias têm areia clara e um mar azul-turquesa. Amanhece cedo e anoitece cedo. Os pores do sol são, invariavelmente, bonitos. O lema é o “leve-leve”, e é assim que os locais vivem, de uma forma tranquila, dia a dia.
Em geral, consideramos que a experiência foi muito enriquecedora. A oportunidade de realizar formações no estrangeiro e percecionar o funcionamento dos Cuidados de Saúde Primários noutras realidades permite perceber como é possível praticar Medicina mediante limitações com as quais não somos deparados diariamente. Esta formação revelou ser uma ferramenta não só importante para o futuro, mas acima de tudo ajudou-nos a pôr em perspetiva o privilégio que é poder trabalhar em Portugal e integrar os Cuidados de Saúde Primários no Sistema Nacional de Saúde, que temos de proteger a todo o custo, hoje mais do que nunca.
Autores:
Beatriz Câmara¹
Joana Ortiz²
Rita Lourenço Vasconcelos³
Afiliações:
¹Centro de Saúde de Ponta Delgada, Unidade de Saúde da Ilha de São Miguel, Região Autónoma dos Açores, Portugal
²Unidade de Saúde Familiar do Parque, ACES Lisboa Norte, Lisboa, Portugal
³Unidade de Saúde Familiar Faria Guimarães, ACES Porto Oriental, Porto, Portugal