Desde cedo decidimos que não queríamos fazer um percurso profissional convencional. A vontade de expandir horizontes e descobrir novas formas de abordagem no âmbito da Medicina da Família fez-nos sobrevoar o oceano Atlântico, rumo ao Brasil. A aventura começou em março de 2023, no Centro de Saúde João Paulo, em Florianópolis, onde realizamos um estágio opcional em Medicina da Família e Comunidade (MFC), assim designada a nossa área de especialização no Brasil.
O Estado de Santa Catarina, onde se situa a cidade de Florianópolis, é uma referência nacional no Brasil no que toca à organização dos cuidados de saúde primários, primando pela sua acessibilidade e eficiência. O Centro de Saúde de João Paulo, localizado numa região piscatória que se encontra em atual expansão populacional e imobiliária, presta cuidados a todos os residentes do bairro João Paulo, abrangendo uma grande variedade de classes económicas e sociais.
A unidade de saúde organiza-se em duas equipas de família, constituídas por médico especialista, enfermeiro, agente comunitário e residentes, que distribuem os utentes entre si de acordo com a área geográfica em que residem no bairro, e não por listas de utentes, como estamos familiarizados.
O centro de saúde está diariamente aberto das 7h às 17h. O quotidiano da consulta decorre sobretudo na modalidade de “demanda espontânea”, em que o doente se dirige ao centro de saúde e é atendido no próprio dia, embora também haja espaço para atendimento programado. A dinâmica da equipa também se revelou bastante distinta, na medida em que a agenda do médico e do enfermeiro funciona de forma conjunta, sendo que o papel da equipa de enfermagem acaba por ter um componente mais clínico e autónomo do que o que se verifica em Portugal. No Brasil, o enfermeiro de família tem competências reconhecidas para a coordenação e gestão das unidades de saúde, realização da anamnese, do exame objetivo e mesmo para a prescrição de alguns tipos de medicamentos e exames. Ao médico de família compete a função de diagnosticar e orientar a patologia mais complexa, orientar e coordenar a equipa de família que integra. O médico é ainda responsável por moderar reuniões semanais, formar os médicos residentes, discutir os casos mais complexos com a equipa de enfermagem e debater as orientações em saúde.
Relativamente à prática clínica que tivemos oportunidade de observar, fomos surpreendidas pela utilização constante de medicinas integrativas, nomeadamente acupuntura, auriculoterapia e fitoterapia, como parte integrante do sistema público de saúde e utilizado diariamente na consulta, tanto pelos médicos, como pelos enfermeiros, sendo frequentemente a primeira opção terapêutica escolhida.
Um outro aspeto que consideramos fundamental e que mais se destacou durante o estágio foi a capacidade comunicacional dos profissionais, bem como a importância dada à comunicação clínica na consulta, realçando o respeito pelo utente e pelas suas vivências. A escuta ativa era um denominador comum em todas as consultas, principalmente em contexto de saúde mental, dando o espaço para que o utente pudesse expor a sua perspetiva e expectativas, permitindo delimitar um plano compartilhado entre médico e utente. Por vezes, no nosso contexto de trabalho nos cuidados de saúde em Portugal, estes aspetos ficam perdidos entre indicadores das unidades de saúde e tempos limitados de consulta, sendo cada vez mais desafiador para o profissional conseguir o espaço e atenção necessários para que o utente se possa sentir realmente ouvido e envolvido na consulta. Desta forma, apesar do reconhecimento dado à comunicação e relação médico-doente como pilares fundamentais ao exercício da medicina da família em Portugal, é crescente a dificuldade de a integrarmos na nossa prática como prioridade, dando frequentemente prevalência ao processo informatizado.
Durante a nossa estadia, foi-nos também dada a oportunidade de frequentar outros centros de saúde, tanto para assistir a consultas de medicina da família com outros profissionais, como para integrar grupos terapêuticos com a Psicologia. A existência destes grupos, gratuitos, acessíveis a todos os utentes e de frequência livre, foi algo que nos despertou bastante interesse e curiosidade. Tivemos possibilidade de participar em vários grupos, nomeadamente no grupo de saúde mental, no grupo da mulher, no grupo de atividade física e no grupo de meditação, embora existissem disponíveis muitos outros nas diferentes unidades de saúde da ilha. Percebemos que a existência destes grupos terapêuticos são uma medida de gestão em saúde instituída com objetivo de colmatar a ausência de disponibilidade para a realização de terapias individuais, otimizando assim os reduzidos recursos existentes. Também em Portugal poderia ser uma medida a implementar, tendo em conta que a escassez de terapias individualizadas nos cuidados de saúde primários é, cada vez mais, uma realidade.
Além da descrição acima, salientamos que vigora em Florianópolis uma equipa de médicos de família dedicados à saúde da população transgénero, integrada no projeto “Ambulatório Trans”, que decorre na Policlínica do Centro do Município. Este conceito de consulta revelou-se algo realmente muito distinto de tudo aquilo que conhecemos e, a nosso ver, de extrema importância. Nesta consulta, a comunidade trans pode ser atendida e orientada no processo de transição de género, com terapia hormonal fornecida de forma gratuita. Para além disso, é a partir deste contacto que estes utentes posteriormente podem ter acesso, pelo Sistema Único de Saúde, a cuidados hospitalares e eventuais procedimentos cirúrgicos que pretendam realizar.
O estágio em Medicina da Família e Comunidade no Centro de Saúde João Paulo, em Florianópolis, permitiu-nos vivenciar uma forma de organização diferente na atenção primária, a prática de medicinas integrativas e grupos terapêuticos, a importância da empatia e comunicação clínica na consulta, com atenção especial aos grupos mais vulneráveis. Em suma, consideramos que esta experiência se tornou muito enriquecedora no nosso desenvolvimento profissional, permitindo-nos conhecer métodos e recursos distintos daqueles que dispomos em Portugal, colocando-nos à prova na abordagem de utentes epidemiologicamente/culturalmente diferentes e, acima de tudo, fomentando um espírito crítico nas Médicas de Famílias que um dia seremos.
Autores: Diana Alves Andrade¹; Mariana Dias Almeida²; Sara Almeida Oliveira³
Afiliações: ¹USF São Martinho, ACES Tâmega II – Vale Sousa Sul; ²USF Barão de Nova Sintra, ACES Grande Porto VI – Porto Oriental; ³USF Ermesinde, ACES Grande Porto III – Maia/Valongo