Relato de experiência: voluntariado na Ucrânia durante a guerra

Temos vivido nos últimos anos verdadeiros e complexos desafios que nos têm posto à prova e que têm exigido uma constante adaptação a novas realidades, que achávamos nunca verem a luz do dia: uma pandemia COVID-19 de impacto global e logo a seguir uma guerra na Europa, apenas comparável com guerras de há várias décadas, que seguramente têm marcado a nossa vida pessoal, profissional ou social a algum nível.

Movidos por uma motivação arraigada no desejo de fazer a diferença no meio de adversidades inimagináveis estivemos, em outubro de 2023, em Uzhhorod, na Ucrânia. Quando surgiu este desafio, vimos uma oportunidade para abraçar um mindset de crescimento, de preocupação em superarmo-nos e fazer algo novo, transformando um acaso numa oportunidade. Decidimos não ficar “reféns” da nossa zona de conforto e partirmos em busca desta viagem por diferentes experiências e oportunidades.

Tudo começou em junho, na Conferência Europeia da WONCA (World Organization of Family Doctors) em Bruxelas, quando conhecemos o Dr. Pavlo Kolesnyk, membro do Conselho da EURACT (European Academy Of Teachers In General Practice) e Diretor do Departamento de Medicina Geral e Familiar da Universidade Nacional de Uzhhorod, que nos deu a conhecer e nos convidou para integrar o seu projeto chamado EUSIT (Europe Ukraine Support in Teaching), que pretende apoiar a formação dos médicos ucranianos em Uzhhorod.

Uzhhorod é uma cidade da Ucrânia ocidental, capital da Transcarpátia, região que faz fronteira com a Eslováquia e a Hungria, considerada por muitos um lugar (mais) seguro e que nos últimos 2 anos recebeu um fluxo interminável de refugiados de todas as partes do país. Face à necessidade urgente de prestar serviços de saúde aos deslocados internos, que perderam casas ou rendimentos, após seis meses de guerra, surgiu, em Uzhhorod, uma Clínica Internacional de Medicina Geral e Familiar.

O projeto idealizado e estruturado pelo Dr. Pavlo Kolesnyk foi implementado após o início da guerra em apenas 3 meses. Atualmente, conta com 27 médicos ucranianos fixos, em regime de voluntariado. A missão única e ímpar desta instituição tem ganho notoriedade a nível internacional contando com o apoio de diversos jovens médicos dos países vizinhos e também dos EUA, Reino Unido, França e, agora, também Portugal.

Durante os dias de voluntariado na clínica foram vários os desafios com os quais nos deparámos. Uma das maiores preocupações era a descompensação de doenças crónicas causada pela dificuldade no acesso a medicação e por problemas económicos. O nosso papel passava muitas vezes por avaliar equivalências e/ou alternativas terapêuticas de donativos de forma a gerir as doenças. Os grupos mais afetados com esta situação eram os já vulneráveis antes da guerra, nomeadamente os doentes com patologia crónica, necessidades especiais, idosos, grávidas e doentes oncológicos.

A crise de saúde mental da população ucraniana está também estabelecida. A exposição da população a eventos traumáticos, sem o fim do conflito à vista, obviamente tem um efeito devastador e vimos muitos ucranianos com patologia psiquiátrica a merecer avaliação e intervenção urgente. A par com a atividade na clínica, tivemos também oportunidade de estagiar uns dias no Hospital Regional de Reabilitação de Neurocirurgia de Uzhhorod – hospital de referência que recebe os soldados ucranianos com patologia traumática sequelar à guerra.

Dado o aumento do número de vítimas da guerra, a necessidade de reabilitação psicológica e física intensificou-se, tendo sido recentemente criado um espaço reservado à reabilitação na clínica, para profissionais voluntários com formação e interesse na área. Este foi, sem dúvida, um dos momentos mais impactantes da nossa experiência. Nas enfermarias sentimos um entorpecimento e incredulidade, sobretudo porque nenhum de nós tinha vivido circunstâncias semelhantes. Observámos muitos soldados jovens, entre os 20 e os 30 anos, com lesões vertebro-medulares irreversíveis, com paraplegia/tetraplegia. De destacar um jovem ucraniano de 23 anos, que após um ano de reabilitação conseguiu recuperar completamente os défices sensivo-motores, face a uma probabilidade quase nula. Quando o questionámos sobre o que iria fazer a seguir respondeu-nos prontamente que queria poder voltar para a frente de batalha, de forma a honrar a bandeira do país.

Sabendo que, apesar de nunca podermos dar tanto quanto recebemos ao longo daqueles dias, organizámos uma formação para mais de 80 alunos de Medicina, internos de especialidade e especialistas, com o objetivo de adquirirem competências práticas sobre exame objetivo musculoesquelético dirigido às lesões mais frequentemente encontradas, facilitando assim a orientação diagnóstica e terapêutica.

No que concerne à cidade de Uzhhorod, o medo é real e constante face a este período de incerteza. Durante a nossa permanência, as sirenes, sinónimo de ameaça de ataque aéreo, tocaram pelo menos três vezes. Nas ruas paira a sensatez e a racionalidade, a vida retoma dia após dia e isto é, sem dúvida, contagioso. É um povo inspirador que transmite resiliência, solidariedade e empatia. Agora, de volta ao conforto das nossas casas e ao exercício da nossa profissão, somos constantemente recordados das vivências de quem enfrenta uma realidade tão díspar da nossa.

Agradecemos aos nossos colegas da InterFamily Clinic, que nos receberam como família e que nos deram a conhecer este lugar certo no meio do caos.

Autores:
Carolina Quental¹
Daniel Bertoluci Brito²
João Sobral³
¹Unidade de Saúde Familiar Prelada, ULS de Santo António
²Unidade de Saúde Familiar Espaço Saúde, ULS de Santo António
³Unidade de Saúde Familiar Baltar, ULS Tâmega e Sousa

 

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