Sempre tive curiosidade em compreender como funcionam diferentes Sistemas de Saúde, numa perspetiva mais “macro” do que aquela que habitualmente adquirimos com a nossa prática clínica quotidiana. Este foi o meu mote para participar no European Young Family Doctors’ Movement (EYFDM) Exchange em Bruxelas (Bélgica), nos dias 4 e 5 de junho de 2023. Através do Exchange, tive a oportunidade de visitar o Centro de Saúde de Schuman, lado-a-lado com o “Quarteirão Europeu” de Bruxelas. Complementei esta experiência com as “Practice Visits” (organizadas pela WONCA Europe Conference), que me permitiram visitar o Centro de Saúde Maison Medicale, no coração da cidade, com uma estrutura organizacional bastante distinta do anterior.
Uma das primeiras diferenças que constatei é que não existe a distinção entre o SNS e o Sistema de Saúde privado na Bélgica. O SNS belga funciona em articulação com seguradoras. O utente paga cada consulta e é reembolsado posteriormente. Contudo, alguns Centros de Saúde funcionam de forma distinta, organizando-se por listas de utentes. Nestas situações, celebra-se um contrato entre o utente e a Unidade e o utente não paga as consultas efetuadas no seu Centro de Saúde. Neste regime, o utente paga apenas se optar por ser observado noutra clínica. Neste caso, os profissionais não têm uma remuneração baseada no número de consultas, mas sim de acordo com a dimensão e complexidade da sua lista e trabalham integrados numa equipa de saúde.
Já no decorrer das consultas, os médicos de família colhem sangue para análises no próprio Centro de Saúde e realizam vacinação em horário protegido para este efeito. Posteriormente, recebem os resultados de análises e exames complementares de diagnóstico digitalmente, sem necessidade de os transcrever manualmente para o processo clínico dos utentes. Os resultados estão acessíveis em qualquer local do país e os médicos têm a responsabilidade de abrir os exames dos seus utentes, avalia-los e avaliar a necessidade de contacto ou convocatória do utente em questão. Para tal, o utente dá permissão ao médico para aceder a todos os seus dados de saúde, através da leitura do seu cartão de cidadão. Os médicos também podem programar o sistema informático e personaliza-lo, de utente para utente. Por exemplo, é possível programar alertas informáticos para não se esquecerem de reavaliar algum parâmetro analítico com uma periodicidade preestabelecida.
Quanto à medicação, a Bélgica dispõe de um sistema de prescrição eletrónica que permite ao utente levantar a sua medicação através da apresentação o seu cartão de identificação na farmácia (sem necessidade de apresentar a receita em papel, sms ou email). Em resumo, trata-se de um sistema de saúde distinto do SNS português, mas que é heterogéneo e que se encontra em reestruturação e transformação. Ter conhecido estas duas unidades de saúde constituiu uma oportunidade de desenvolvimento e inspiração. Apesar de se tratarem de realidades distintas, não foi infrequente identificar problemas comuns aos que experienciamos no nosso SNS. Experiências como esta fomentam a nossa capacidade crítica e criatividade para a sua resolução futura. Considero, ainda, que ter integrado um grupo de médicos com diferentes nacionalidades durante o Exchange e as “Practice Visits” me colocou numa posição privilegiada para estabelecer novos laços com colegas, cujas experiências profissionais, culturais e pessoais são muito diversas. Numa palavra: enriquecedor!
Nos dias 6 e 7 de junho, decorreu a EYFDM Preconference, organizada pelo Movimento Europeu de Jovens Médicos de Família, com o mote “You can’t always get what you want” (…but if you try sometimes you’ll find and get what you need, acrescentaria). Foram abordadas temáticas como o treino em comunicação, o equilíbrio entre a vida profissional e pessoal, a realidade das fake news em saúde e a multiculturalidade na prestação assistencial.
Gostaria de destacar a palestra “How to become the family doctor you want to be?”, na qual foi abordada a importância de escutar o utente e adaptar a nossa “agenda” a cada momento, de acordo com aquilo que nos é transmitido. Através de exercícios práticos (baseados em técnicas habitualmente aplicadas no teatro), constatamos o poder que têm as palavras que dizemos e o momento em que as dizemos. No final da apresentação, a palestrante brindou-nos com 3 sugestões futuras: “listen and be altered”, “take your time” e “say yes and…’” (em detrimento de “não” ou “sim, mas…”).
Já no workshop “How technology is reshaping the life of GPs. What will come next?”, foram abordadas várias tecnologias recentemente desenvolvidas e com aplicabilidade direta na nossa prática clínica. Por exemplo, quem sabe se no futuro não realizaremos a nossa consulta sem termos de nos preocupar com os registos? Já existem aplicações digitais com capacidade para filtrar e organizar a informação verbal em registos clínicos por extenso, cabendo ao médico apenas a sua retificação final. Esta e outras das tecnologias apresentadas utilizam Inteligência Artificial – um tema bastante atual e que gerou uma reflexão e discussão muito pertinente.
O segundo workshop que gostaria de salientar foi o “Positive health and goal-oriented care in general practice”. Aqui aprendemos a aplicar a metáfora do táxi aos nossos utentes, questionando-os: “para onde vai?”. Através desta pergunta, procuramos focar a nossa intervenção nos objetivos que são efetivamente prioritários para o utente (em vez de nos focarmos somente nas preocupações do profissional). Valorizam-se as motivações e as soluções encontradas por cada utente – numa abordagem muito próxima da defendida pela Medicina Centrada na Pessoa.
Por fim, nos dias 7 a 10 de junho, decorreu a 28th WONCA Europe Conference, com o lema “making choices in Primary Care”. Num total de mais de 2000 participantes, Portugal foi o terceiro país com maior representatividade – facto muito comentado e enaltecido por todos os colegas e elementos da organização com quem contactei. Um dos temas novamente debatido foi a “Positive Health”, tendo sido apresentada uma sessão com uma perspetiva complementar ao workshop que realizei na pré-conferência. Foram apresentados os estudos que deram origem à “Spider Web”, um questionário de autopreenchimento para o utente, que auxilia na reflexão e comunicação do seu estado de saúde/doença e prioridades em contexto clínico. A “Positive Health” assenta em 3 pilares principais, cuja tradução para português constitui um desafio: 1) “Comprehensibility” (reflexão do utente sobre a “Spider Web”), 2) “Meaningfulness” (“O que é importante para si? Gostaria de mudar alguma coisa?”) e 3) “Manageability” (avaliação das opções/soluções encontradas pelo próprio utente e seu acompanhamento numa perspetiva longitudinal).
Saliento também a palestra sobre burnout, intitulada “Professional well being – minimizing the adverse effect of clinician Burnout on quality and safety of care”, na qual foi abordada a associação que se verifica entre o burnout, a diminuição da empatia e o aumento da probabilidade de erro médico. Pelo contrário, os profissionais com elevado grau de satisfação profissional reportam menos erros médicos, apresentam menor probabilidade de prescrição inapropriada e prestam mais aconselhamento sobre medidas preventivas aos seus utentes. Nesta palestra, foram abordadas as estratégias para prevenir e reduzir o burnout entre profissionais, tais como a redução da sobrecarga laboral, as medidas de estilo de vida, a congruência entre os valores pessoais e profissionais, o treino em comunicação, a promoção do trabalho de equipa e o reconhecimento por parte dos colegas e das chefias. De todas as medidas, as estratégias organizacionais parecem ser as que têm mais efeito para redução do burnout – e, por isso, na minha ótica aquelas em que deveria existir um maior investimento.
Quanto aos trabalhos apresentados, destaco as lectures sobre “Large data/AI”, na qual foram apresentados trabalhos que culminaram na construção de modelos de multivariáveis. Um destes modelos tinha como intuito prever o risco de internamento não programado numa população geriátrica. Outro visou a utilização de Inteligência Artificial na interpretação automatizada das espirometrias.
Por último, o encerramento da conferência ficou marcado pelo lançamento do “WONCA Europe Statement 2023”, que alerta para a carga laboral excessiva dos médicos e a necessidade de medidas efetivas para fazer face à escassez de força de trabalho nos cuidados primários. Este statement aborda a necessidade de redução do trabalho administrativo e reforça o trabalho colaborativo, o apoio à investigação, a adoção da tecnologia para simplificar e automatizar tarefas, e visa fomentar o equilíbrio entre a vida pessoal e profissional dos médicos de família. Ao melhorar a satisfação dos profissionais, melhorar-se-ão os resultados em saúde e fortalecer-se-ão os cuidados primários.
Tratou-se da primeira vez que participei num congresso internacional. Os 7 dias que aqui procurei resumir constituíram uma experiência única, cujas mais-valias passam pelo campo da comunicação, do “culturally competent care” e “networking”, à aquisição ativa de conhecimentos, com múltiplas oportunidades de reflexão e debate de diferentes perspetivas. Trouxe de Bruxelas um sentimento de missão cumprida e satisfação – assim como a vontade de participar em edições futuras!
“We need doctors with cool heads and warm hearts”
Maria Beatriz Cordeiro Morgado (médica interna de Medicina Geral e Familiar na USF Cova da Piedade)