Saúde na Favela – Relato de Estágio em Medicina de Família e Comunidade no Rio de Janeiro

Autora: Maria Teresa Couto (IFE de MGF, ACeS Sintra, ARSLVT)

 

Em Fevereiro de 2020 – quando a COVID-19 parecia ainda uma realidade distante e controlada – parti em direcção ao Rio de Janeiro para realizar um estágio opcional em Medicina de Família e Comunidade (MFC), no Centro de Saúde (CS) Escola Germano Sinval Faria, localizado na Fundação Oswaldo Cruz. Esta unidade dá apoio ao território de Manguinhos, zona norte do Rio praticamente ocupada por favelas, com uma população de mais de 36000 habitantes.

Este estágio tinha como objectivos conhecer a organização da residência (internato) em MFC, o funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS), as valências, meios de diagnóstico e terapêutica, e cuidados oferecidos no CS, as competências dos vários grupos profissionais, a abordagem familiar e comunitária e actividades no território, os problemas de saúde e motivos de consulta mais frequentes, e participar das reuniões e sessões clínicas. A residência de MFC tem a duração de 2 anos e os residentes realizam consulta autónoma desde início (sob consultoria dos tutores), actividades no território, e estágios externos em Consultório de Rua, saúde mental, infecciologia e dermatologia, e dinamizam “Canais Teóricos” semanais, para discussão de temas clínicos entre internos e orientadores.

A atenção primária organiza-se em Equipas de Saúde da Família (ESF) multiprofissionais, cada uma responsável por cerca de 3000 habitantes, distribuídos de acordo com a área territorial de residência, não por uma lista de utentes/famílias. Integrei a microequipa “Fortaleza”, constituída por um Especialista de MFC, duas internas da especialidade, uma Enfermeira de família, uma Técnica de Enfermagem e quatro Agentes Comunitários de Saúde (ACS). Das ESF fazem também parte o cirurgião-dentista e os técnicos de saúde bucal.

O primeiro dia de trabalho foi dia de “Mutirão” (que, no Brasil, é uma mobilização coletiva para alcançar um fim, baseando-se na ajuda mútua prestada gratuitamente) com os profissionais mobilizados para colocação de DIUs de cobre a todas as mulheres que aparecessem nas 12 horas de funcionamento. Nunca tinha visto e colocado tantos DIU num só dia! Foi uma experiência única, empoderar todas aquelas mulheres para poderem decidir quando engravidar, e assim prevenir gravidezes indesejadas e precoces, como tão frequente é naquela comunidade.

A equipa de enfermagem realiza consultas autónomas desconexas, pode solicitar exames complementares, prescrever medicação protocolada e realizar procedimentos. A Enfermeira da equipa realizava consulta de saúde materna alternada com o MFC, e pedia análises de vigilância da gravidez; na consulta de planeamento familiar realizava colheita para colpocitologia, e atendia as consultas de “demanda espontânea” (as nossas consultas abertas/doença aguda). Os técnicos de enfermagem podem realizar procedimentos (ECG, ecografias e pensos) e auxiliam na vigilância e educação para a saúde. Todos os ACS são residentes do território e, além de funções de secretariado e actualização do registo dos residentes da área que lhes é adstrita, realizam visitas domiciliárias diárias de forma activa e sinalizam os utentes com problemas de saúde novos, agravamento de situações crónicas, novas grávidas, problemas sociais e situações de risco e vulnerabilidade, sendo o elo entre a ESF e a comunidade. A maioria das consultas médicas é por “demanda espontânea”, sendo precário o seguimento das doenças crónicas (apenas metade dos diabéticos e hipertensos diagnosticados em Manguinhos tinham acompanhamento regular, segundo dados de 2012).

No CS existia laboratório de análises, farmácia para dispensa gratuita com prescrição, imagiologia, salas de tratamentos onde tive oportunidade de realizar procedimentos de pequena cirurgia, cuidados a úlceras de perna e lavagens auriculares, e duas salas de observação (SO pediátrico e de adultos), para internamento transitório de utentes que necessitam transferência para cuidados secundários. As ESF são apoiadas pelos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), constituídos por Psiquiatras, psicólogos, farmacêuticos, nutricionistas, fisioterapeutas, médicos acunpuncturistas, terapeutas ocupacionais, professores de educação física e assistente social. Tive oportunidade de acompanhar consultas conjuntas com a psiquiatra, consultas de nutrição, sessões de acupunctura e auriculoterapia.

Os profissionais dinamizam ainda Grupos Terapêuticos comunitários, como a Roda de grupo – grupo de Ansiedade, de Tabagismo, de Dor; grupo de Artesanato; e “Terrapia” – grupo de alimentação viva, para os utentes falarem sobre os seus problemas e partilharem experiências para melhor lidarem com as suas dificuldades. Destaco as temáticas mais partilhadas: pobreza, violência doméstica, e stress-pós-traumático por perda de entes queridos em conflitos armados e tráfico de droga. O maior desafio foi realizar as visitas domiciliárias nas favelas, dadas as condições precárias e a insegurança que se sentia. Mas a equipa de saúde só saía quando os ACS confirmavam que o “território está calmo”, e tudo parecia amenizar-se durante as visitas e a prestação de cuidados.

Esta experiência foi extremamente enriquecedora a nível pessoal e profissional, guardei uma grande admiração por aqueles profissionais que, apesar de todas as adversidades e riscos a que estavam expostos diariamente, conseguiam fazer verdadeiramente a diferença, e aplicar um modelo organizacional com forte componente comunitária como a receita chave para levar cuidados de saúde aos locais mais recônditos das favelas. Aconselho todos os colegas que possam a saírem da zona de conforto e terem estas experiências, que proporcionam grandes aprendizagens para a vida, para a nossa prática clínica, e alargam os mundos dentro do nosso mundo.

“A atenção primária é uma cadeira na primeira fila para o espectáculo da vida.
E ela é mesmo espectacular.”
Causos Clínicos – Histórias da Medicina de Família e Comunidade.

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