Tudo nas mãos do médico – relato de prática em MGF rural

Autoras: Catarina Ramos e Julia Velte (Médicas Internas de Medicina Geral e Familiar – USF Alphamouro, na foto com o Dr. César Gonçalves)

 

Este artigo relata a experiência de um mês de prática de Medicina Geral e Familiar (MGF) em contexto rural. O estágio decorreu em abril de 2021, no Centro de Saúde da Calheta na Ilha de S. Jorge (Açores) e teve a orientação do Dr. César Gonçalves. Antes da seleção do local de estágio foi necessário definir os seus objetivos. Pretendíamos comparar duas realidades opostas: a da nossa Unidade de Saúde Familiar, localizada na periferia de uma grande metrópole e, por isso, próxima de grandes centros hospitalares, com outra que para além de rural fosse também distante dos recursos hospitalares. Assim, delineámos os seguintes objetivos:

• Experienciar uma organização de cuidados de saúde diferente do até então vivenciado;
• Conhecer o papel do Médico de Família (MF) na comunidade rural, numa distinta relação de proximidade com a população;
• Aprimorar a gestão de recursos.

Devido às restrições de viajem causadas pela pandemia e procurando aproveitar a diversidade de contextos do território nacional, optámos pela Região Autónoma dos Açores. Das 9 ilhas da região, o local selecionado foi a ilha de S. Jorge. Esta é caraterizada por pertencer ao grupo central do arquipélago e ter uma população de 9171 habitantes, cujos cuidados de saúde são garantidos por dois centros de saúde e suas extensões. Em cada centro de saúde exercem 2 ou 3 médicos de família que têm à sua disposição uma unidade de internamento, unidade básica de urgência e técnicas de cardio-pneumologia, radiografia, análises laboratoriais, psicologia, fisioterapia e medicina dentária. Optámos por contactar o Centro de Saúde da Calheta, onde o Dr. César Gonçalves aceitou receber-nos para este estágio.

Ultrapassados os entraves causadas pela pandemia, os três testes covid negativos, deslocámo-nos para os Açores em abril de 2021. Durante quatro semanas tivemos a oportunidade de participar nas diversas atividades da equipa local.

Nesta ilha sem ensino superior, a população tem baixa literacia e a maioria está empregada no sector primário ou secundário (criação de gado, indústria de queijo ou de atum). O trabalho pesado, alimentação pobre (primariamente carne e hidratos de carbono, com baixo consumo de fruta e vegetais), a ausência de atividade física e o isolamento crescente refletem-se nos problemas de saúde mais frequentes: hipertensão, obesidade e diabetes, doença cardiovascular, patologia osteoarticular e muito frequente doença mental (sobretudo dependência de álcool, ansiedade, depressão e manifestações psicossomáticas). Enquanto na nossa USF grande parte da atividade girava em torno da pandemia COVID-19, durante um refrescante mês tivemos oportunidade de esquecer por completo este problema, já que não havia casos em S. Jorge.

A ilha não tem cuidados de saúde secundários, pelo que tanto a referenciação hospitalar como o pedido de exames complementares têm de ser realizados de forma muito criteriosa. Para consultas hospitalares, os doentes têm direito a viagem e estadia paga pelo governo. Ainda assim, o tempo e esforço consumidos levam a frequente resistência por parte dos doentes. Com isto, o médico assume um papel muito polivalente:

• Internamento – com uma média de 3-4 doentes internados, por motivos tão diversos como descompensações de insuficiência cardíaca ou tentativas de suicídio;
• Urgência/Emergência – prestação de cuidados imediatos, decisão de eventual evacuação de avião/helicóptero;
• Pequena cirurgia – excisão de lesões cutâneas;
• Imagiologia – interpretação de exames desprovidos de relatório médico;
• Saúde Pública – realização de juntas médicas e gestão da testagem de passageiros;
• Medicina legal – realização de autópsias;
• Obstetrícia – realização do parto em situações de recusa da habitual evacuação das grávidas às 35 semanas de gestação.

Apesar de ser apenas uma parte de todas as atividades habituais do médico, estas são as que destacamos de forma a salientar o papel multivalente que o MF rural é forçado a assumir num contexto tão particular. Para além destas tarefas, pudemos ainda observar e participar nas consultas programadas. Estas ocorriam maioritariamente de manhã estando o resto do dia reservado a consultas de doença aguda.

As consultas de doença aguda realçaram mais duas das muitas valências que caracterizam o MF em meio rural, a disponibilidade constante e a função administrativa: os utentes foram sempre atendidos sem agendamento e sem limite de horário, por ordem de chegada, sendo inscritos pelo médico durante a própria consulta. A diversidade aqui descrita não se aplica só à prática de MGF, mas também ao local onde esses cuidados de saúde foram prestados, já que os Centros de Saúde têm pequenas extensões. Estas possibilitam o acesso a cuidados por parte da população mais isolada e sem meios de se deslocar. Tivemos oportunidade de uma vez por semana fazer consulta na extensão da localidade do Topo, no extremo oriental da ilha. Aqui, o isolamento e comorbilidades da população eram ainda mais marcados, assim como a pronúncia açoriana que por vezes tornava a comunicação um desafio.

Além das tarefas distintas que descrevemos até agora, ao refletirmos acerca da principal diferença que encontrámos na prática clínica, sublinhamos o tipo de medicina praticada. A baixa literacia leva a que atitude paternalista seja ainda a mais frequente. Habituados a este tipo de medicina, constatámos que os utentes colaboravam menos do que antecipado na aplicação da entrevista motivacional, tornando-a difícil e demorada.

Apesar da infraestrutura presente e do grande esforço dos profissionais, deparámo-nos com uma gestão de recursos que consideramos deficitária (por exemplo, duas unidades de urgência numa ilha tão pequena geram escalas desnecessariamente pesadas para os escassos profissionais; o trabalho de equipa é praticamente ausente, enfrentando o médico de família toda a atividade sem grande apoio). Mais ainda, observou-se que os padrões de qualidade e efetividade da saúde rural propostas pela WONCA estão ainda distantes. Acreditamos que esses desvios estão relacionados a falhas sobretudo a nível de recursos humanos, organização e envolvimento da população.

No entanto, julgamos ser importante louvar o enorme desafio de polivalência que o MF enfrenta no quotidiano. O nosso tutor, o Dr. César Gonçalves, geria com aparente facilidade a imensidão de tarefas pelas quais era responsável. Com isto, e apesar de estar já próximo da reforma, a sua carga horária semanal nunca era inferior a 60h, incluindo frequentes turnos de urgência diurnos e noturnos. Conhecia todos os utentes pelo nome, tratando-os por tu, e sabendo todo o historial, contexto profissional e familiar sem recurso ao processo clínico. Este é um modelo que nos suscita grande admiração, e acreditamos ser merecedor de reconhecimento por parte não só da comunidade como também dos pares que, no nosso entender, peca por ser parco.

Concluindo, este estágio permitiu-nos conhecer uma realidade totalmente distinta tanto em termos das características da população como também do trabalho do MF. Sentimos
que fomos adquirindo e aprimorando as competências necessárias para lidar com uma população mais iletrada e com maior resistência à mudança. Finalmente, esta gratificante experiência reforçou em nós a valorização do contexto da nossa unidade e equipa com quem trabalhamos diariamente.

Num pequeno aparte, não podemos esquecer de referir a beleza natural da ilha de S.Jorge, com a sua costa acidentada e inúmeras fajãs, que convidam a passear.

Por fim, referimos também que a Ilha de S. Jorge continua presentemente a necessitar de médicos de família. Acreditamos tratar-se de um local de grande potencialidade para prestar cuidados de excelência, dependendo apenas de alguns profissionais de saúde com motivação e energia que venham criar uma equipa e dar uso aos ótimos recursos materiais presentes, pelo que deixamos o convite a quem procure um novo desafio na sua vida.

 

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