Preparados para o fim do binarismo?

Integrada no ciclo de sessões de debate intitulado «Para além da Medicina: ao encontro das humanidades», realizou-se na sede da APMGF em Lisboa, a sessão «Entre o biológico e o social: diálogos sobre identidade de género», com moderação de Isabel Pereira dos Santos (especialista em MGF, ex-presidente do Colégio de MGF da Ordem dos Médicos e recentemente vencedora do Prémio Médicos de Família de Ouro na categoria «Médico de Família ao Longo da Vida») e intervenções de Miguel Vale de Almeida (antropólogo, ex-deputado à Assembleia de República, professor catedrático no ISCTE-IUL e investigador do Centro em Rede de Investigação em Antropologia – CRIA) e Maria Teresa Henriques (professora, mestre em Educação Artística, especialização em Teatro e Educação, pela Universidade do Algarve e Doutorada em Ciências da Educação, especialidade em Educação, Sociedade e Desenvolvimento).

“Somos todos cidadãos, agentes e atores políticos e temos o dever de contribuir para a construção de uma sociedade mais justa, diversa, igualitária e inclusiva, à luz daquilo que todos subscrevemos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos”, declarou Isabel Santos na ocasião ao justificar este debate na «casa» dos médicos de família portugueses, que diariamente lidam com “pessoas que pedem ajuda e aconselhamento, O objetivo desta sessão é portanto o de informar sobre a problemática em torno da identidade de género, trazendo alguma luz a um ambiente que é conflituoso, mas numa dinâmica amigável e descomprometida”.

De acordo com Miguel Vale de Almeida, é importante ultrapassar nesta esfera uma dicotomia complexa que tem persistido ao longo dos séculos e que a Antropologia moderna tem procurado superar recentemente, a separação entre biológico e social, ou entre natureza e cultura: “na teorização que vai sendo feita em Antropologia está inserida uma tentativa de superar tal separação e de perceber até que ponto os conceitos de natureza e biologia são, em muitos casos, construidos socialmente, algo a que damos nomes e sistematizamos. Isto, em paralelo ao reconhecimento de que existe uma natureza biológica que molda grande parte da nossa vida social. Vermos estas coisas em conjunto é uma estratégia que se está a tornar cada vez mais produtiva para entender este tipo de questões”.

No que respeita às definições de género e às tradicionais matrizes masculino e feminino, o antropólogo sustentou que as mesmas “não emergem dos corpos, enquanto entidades absolutamente biológicas, emergem antes de regras sociais coletivamente definidas na história e que vão treinar os corpos, de certa maneira, para que estes sejam o espelho e a confirmação das próprias regras sociais. É claro que isto é feito com limites, que são os do corpo e do biológico e a razão que leva as regras sociais a escolherem determinados elementos para definir o masculino e o feminino está ancorada nos potenciais dos corpos, nas diferenças que advêm do dimorfismo sexual”.

Na perspetiva do investigador do CRIA, as últimas décadas trouxeram inúmeras mudanças nas codificações do género que, de uma forma mais acelerada ou mais lenta, foram sendo assimiladas pelas comunidades, contudo quando chegamos às transformações em torno da transexualidade, das pessoas transgénero e da fluidez de género parece surgir uma evidente perturbação social em muitos setores: “a suposta correspondência entre a corporalidade e o sexo atribuído à nascença e o género que a pessoa apresenta é posta em causa. Isto baralha a categorização, o simbolismo e a perceção, mas a quem? Normalmente as pessoas que se confundem também com a não correspondência dos códigos de género mais esperados, por exemplo no comportamento das mulheres e dos homens, são as pessoas que aceitam que alguém seja gay ou lésbica, desde que aparentem masculinidade ou feminilidade. Quando estes códigos são quebrados, através da feminização de um homem ou a masculinização de uma mulher, temos um problema em mãos. Tal significa que continuamos muito agarrados à performance e ao teatro do género”. Estas disparidades de perceção entre grupos sociais podem depois elevar-se a verdadeiros conflitos na comunidade, quando determinados grupos de indivíduos exigem a consagração dos seus direitos em lei e se entra numa batalha pela alteração da ordem jurídica, no sentido de desligar o sexo à nascença do género assumido pela pessoa. Entra-se, assim, no espinhoso e muitas vezes cruel mundo da liça política em torno da identidade de género. “Quando as pessoas assumem esta postura de alterar a ordem jurídica e de Estado, estão a assumir uma postura extremamente desafiadora, porque ela põe em causa a forma como organizamos a estatística social, a identificação das pessoas através do género e do sexo”, alerta Miguel Vale de Almeida. O antropólogo lembrou também que a sociedade portuguesa, as instituições e as estruturas políticas lidaram com este problema de modo conservador, permitindo que alguém que nasceu homem se passe a identificar juridicamente como mulher, ou vice-versa, por auto-determinação, “mas mantendo as categorias binárias, que continuam a ser reproduzidas, ou seja a manutenção da vontade de reter o binarismo”. O académico considera, todavia, que este debate está a ficar mais interessante, na medida que nos últimos anos começaram a aparecer “movimentos culturais, identitários, grupos de pessoas que se conhecem entre si e que procuram quebrar esse binarismo”.

Na perspetiva de Maria Teresa Henriques “quando se olha para a identidade de género não significa estar-se entre o feminino e o masculino, entre a mulher e o homem, entre o cis e o trans, é ir além disso. Alguns dos meus alunos utilizam expressões para se identificarem que eu própria não conheço. Isto significa que todas as categorias que usamos são construções sociais, temporais e espaciais, que resultaram de um contexto específico”. A professora focou o trabalho que algumas escolas e agrupamentos procuram fazer para garantir uma escola não discriminatória, numa fase em que o país está numa espécie de limbo, depois de o Presidente da República ter vetado os decretos da Assembleia da República sobre a escolha de nome próprio neutro e medidas a adotar pelas escolas para a implementação da lei que estabelece a autodeterminação da identidade e expressão de género: “em algumas escolas – dependendo da coragem dos diretores – há firmeza para avançar como podem e com base nos pressupostos dos decretos, sobretudo quando as associações de pais são flexíveis e participativas, mas muitos agrupamentos não querem arriscar, nomeadamente em questões como a possibilidade de o aluno poder mudar o nome próprio. É importante dizer que certas escolas chegaram até a preparar casas de banho sem género definido”.

Ainda segundo a pedadoga, a “revisão da literatura sobre o tema confirma que a escola continua a reproduzir discursos e práticas discriminatórias e isto é algo que eu própria observo. Sou professora no ensino secundário e embora já não exerça atividade letiva faço formação para docentes, sou coordenadora do plano cultural da escola e trabalho com grupos de teatro extra-curriculares, que são aliás espaços de segurança. Nunca iremos resolver esta questão na escola se continuarmos a dizer aos jovens que existe um gabinete no segundo andar onde eles podem conversar sobre qualquer problema de violência ou infelicidade que sintam”.

Assista ao vídeo da sessão na integra:

 

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