Uma MGF engajada e com tempo para produzir resultados

Dentro do leque de fantásticas keynote lectures oferecidas aos delegados pela 25ª Conferência Mundial da WONCA pontuaram intervenções marcantes como as de Cindy Lam (Departamento de Medicina Familiar & Cuidados de Saúde Primários da Escola de Medicina da Universidade de Hong Kong) e de Tracey Naledi (professora de Saúde Pública e Deputy Dean for Social Accountability and Health Systems na Universidade da Cidade do Cabo – África do Sul).

A primeira das preletoras deixou bem claro que a arte da Medicina Familiar é longa e precisa de intervalos temporais consonantes com a complexidade da sua formação e atuação. “Os médicos de família existem para providenciar cuidados com qualidade, não qualquer tipo de cuidados (…) Ultimamente, tivemos muitas mudanças ao nível de estrutura, processos e outcomes que nos são exigidos, já não podemos exercer como em tempos idos. É fundamental partilhar responsabilidades e recursos, porque desta forma aquilo que conseguimos alcançar é muito mais significativo. Por outro lado, sabemos que uma das formas de contentar os políticos e administrações, no que respeita às suas expetativas de recursos em saúde, é aceitar que a formação dos novos MF seja encurtada. Eles querem que a formação seja rápida, concisa e fácil. Esta opção apenas permitirá gastar dinheiro e meios adicionais e irá desiludir, no final, as pessoas. Cabe-nos, a nós, defender aquilo que consideramos serem os standards aceitáveis para a nossa especialidade e para a nossa formação”.

Já Tracey Naledi abordou a importância de cada médico de família, no seu local de origem, se envolver dentro das suas possibilidades em projetos comunitários e na defesa de direitos dos doentes e populações, sobretudo as mais vulneráveis em termos de saúde. Na sua palestra, recordou passagens e ideias do artigo que publicou na Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, «Beyond the GP practice: why the future of health starts in the community» e disse: “as nossas vozes, enquanto médicos, são tão vitais como os cuidados que prestamos. Somos treinados para estar na frente e ser líderes de equipas, mas quando trabalhamos na comunidade o que nos é requerido é humildade, precisamos de ouvir e estar preparados para aprender com aqueles que são afetados pelos problemas (…) Quando a comunidade se ergue, devemos estar ao seu lado e oferecer o nosso apoio, mesmo admitindo que não temos todas as respostas”. A médica sul-africana defendeu inclusive em Lisboa que a “advocacy em saúde deveria ser integrada no núcleo de responsabilidades clínicas de todos os médicos, na medida em que a Medicina – e a Medicina Familiar, em particular – está muitas vezes a trabalhar na fronteira da sobrevivência da comunidade, naquele tempo e espaço que pode levar as pessoas ao desespero. Não podemos remeter-nos ao silêncio! Quando nos apresentamos como doutores ou professores, as portas abrem-se… é necessário perceber como podemos usar esse poder para fazer bem às comunidades”.

Os portugueses foram sempre figuras de relevo no programa neste evento, como aconteceu com Filipa Dias e Diogo Magalhães, médicos internos de MGF na USF Porto Centro (ULS de São João) que realizaram o simpósio «(Em)powering health: exercise prescription and supplementation in primary care». “Este é um tema importante. Sabemos dos níveis de inatividade física alarmantes no mundo inteiro. Ora sendo a MGF uma especialidade tão abrangente, é importante falar sobre estes assuntos e trazer ferramentas para as nossas consultas, até porque estamos de falar de intervenções quase sempre simples, que na maior parte dos casos não envolvem prescrição de medicamentos, mas que têm um grande impacto na saúde e qualidade de vida dos nossos utentes. Infelizmente, ainda pomos um pouquinho de lado estas preocupações e tendemos a ignorar esta responsabilidade”, alerta Filipa Dias. Já relativamente à suplementação, a jovem médica relembra que esta é uma área sobre a qual “muitos de nós possui reduzido conhecimento. De facto, os doentes trazem-nos questões à consulta a propósito dos suplementos e muitas vezes não sabemos abordar e aconselhar. Daí a relevância de trazermos conselhos práticos através deste simpósio”. Para Diogo Magalhães, torna-se claro que “a prática residual de prescrição de exercício físico e suplementação é transversal à maioria dos países e colegas. Ainda assim, em Portugal não estamos mal em termos comparativos, na medida em que temos plataformas que na consulta permitem a prescrição de exercício. O tempo para este tipo de ato médico é reduzido, mas penso que cada vez mais tentamos incluir tal componente em consulta. No que respeita à suplementação, parece-me ser algo muito pouco falado na Medicina. Trata-se de uma matéria mais abordada nos cursos de nutrição e acabamos por ter apenas um nicho restrito de médicos que se sub-especializam e depois partilham a experiência e conhecimento com os outros”. Segundo Diogo Magalhães, os participantes no simpósio consideraram “a formação muito útil, acrescentando competências que podem aplicar na sua prática clínica. Saíram daqui, com certeza, com mais bagagem para aplicar conceitos e para, por exemplo, prescrever aqueles suplementos que hoje sabemos serem seguros e que carregam evidência de eficácia e segurança”.

Como é habitual, as conferências mundiais da WONCA são marcadas também pela entrega de prémios aos médicos de família que mais se destacaram no último ano, ao anúncio dos premiados com bolsas e à passagem de testemunho na liderança da organização. Este ano, Lisboa despediu-se do Comité Executivo liderado por Karen Flegg e deu as boas vindas à equipa presidida por Viviana Martinez-Bianchi. A médica de origem argentina, que agora assumiu as rédeas da WONCA Mundial, frisou que quando foi escolhida para a presidência no mandato 2025-2027 prometeu “ser uma voz a favor da equidade, da parceria e de um bom futuro para a nossa força de trabalho da Medicina Familiar”. A líder destacou ainda o facto de em muitos locais do globo “os médicos de família trabalharem com remuneração insuficiente, desapoiados”, a alimentarem-se somente de “paixão e resolução” e de, pese embora “fazerem parte muitas vezes do interstício da nossa sociedade”, serem forçados a atuar em sistemas de saúde em que “os procedimentos são priorizados em detrimento das pessoas”.

Uma coisa é certa, os médicos de família têm pela frente enormes desafios e as pessoas que servem dependem da sua energia e resiliência, como declarou Viviana Martinez-Bianchi: “em todo o mundo por onde passei, vi como os médicos de famílias e as suas equipas são uma linha de vida, uma tábua de salvação para as comunidades, uma força em defesa da justiça social e igualdade”.

Como mensagem final aos colegas, a nova presidente da WONCA afirmou de modo perentório: “muitos de nós já se sentiram exaustos, ou sentiram que o sistema não funcionava. Mas, como já pude verificar em inúmeros locais pelos quais passei, há algo de extraordinário que acontece: os médicos de família não desistem, mantêm as portas dos consultórios abertas, ficam ao lado das comunidades, dos valores essenciais da Medicina e da esperança. É isto que nós somos, é isto a Medicina Familiar!”.

 

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