Hugo Gonçalves – “Entro no meu escritório para escrever e é como se subisse a bordo da máquina do tempo e do espaço”

O final da tarde do dia 28 de março será, com toda a certeza, um momento muito aguardado do 42º Encontro Nacional de MGF, na medida em que iremos acolher um dos mais brilhantes escritores a despontar no nosso país nas últimas décadas: Hugo Gonçalves. O autor será figura de destaque na sessão presencial do Clube de Leitura APMGF, um acontecimento que já figura entre os pontos altos do Encontro Nacional ano após ano e nos trouxe no passado conversas memoráveis com Mia Couto ou Lídia Jorge. Este ano, vamos trocar impressões com alguém que tem ajudado a dar nova roupagem à ficção portuguesa e que abordará a sua obra «Revolução», centrada num período recente da nossa história durante o qual se redefiniram novos limites para a liberdade e para as relações familiares e sociais. Neste simpático mas curto aperitivo, Hugo Gonçalves confessa que será a primeira vez que fala para uma audiência composta apenas por médicos, contudo sublinha que “independentemente da natureza do ofício do leitor, os livros são uma forma de irmos além de nós mesmos”.

 

Como encarou este convite e de que forma olha para a ideia de médicos que procuram, com regularidade, energia redobrada e deslumbramento nas páginas de um livro?

Hugo Gonçalves – Recebi o convite com bastante gosto. Os livros deram-me a possibilidade de viajar em Portugal e no estrangeiro, de conhecer diferentes tipos de leitores. Será a primeira vez que falo para uma audiência exclusiva de médicos, mas, independentemente da natureza do ofício do leitor, os livros são uma forma de irmos além de nós mesmos. A leitura, além do conhecimento, sempre foi uma espécie de aventura, um prazer. É isso que nos cativa e nos aproxima. Duas pessoas, no mesmo autocarro, a ler livros diferentes, são próximas porque participam desse esplendoroso fenómeno de transformar pequenos signos numa página em vidas inteiras. Ser leitor faz parte da minha identidade mais até do que a escrita. Não consigo imaginar-me sem ser um leitor.

De que trata, na essência, a sua obra «Revolução» e porque decidiu escrever um romance neste contexto histórico?

Trata da transformação de Portugal num dos períodos mais importantes da sua História. Começa nos últimos anos da ditadura e termina nos primeiros anos da democracia, centrando-se, em particular, no período do PREC, e seguindo a família Storm – os três irmãos e a matriarca. A família é uma unidade em constante evolução, o microcosmos onde formamos o nosso caráter e onde desenvolvemos os primeiros traumas. A metamorfose da família é também uma metáfora para a mudança radical no país, que vinha de um período de quase 50 anos de obscurantismo, tirania e tortura.

Há quem alvitre que o 25 de Abril e o PREC já pouco representam para as gerações mais jovens. Quando decidiu revisitar o período e o impacto social e cultural que teve, pensou na importância de preservar esta memória coletiva? Ou estava “apenas” interessado na riqueza deste pano de fundo para a evolução da família Storm?

Os escritores são um pouco oportunistas e vampiros, a minha primeira pulsão era aproveitar a dramaturgia rica deste período inigualável. No entanto, como diz uma das personagens, o direito da liberdade implica o dever da memória, e ainda que eu faça literatura, não ativismo, é claro que escrever sobre a conquista da liberdade, bem como as dores de crescimento que isso implicou, tem ecos no presente, no que está a acontecer agora. Mark Twain dizia que a História não se repete, mas rima. Quem ler este romance verá como a frase tem ressonância hoje. Se é verdade que muita gente não sabe, ou esqueceu, ou não quer saber o que é viver numa ditadura, e se deixa encantar pelo canto da sereia radical e populista, também é verdade que eu fui encontrando jovens leitores que estão interessados em conhecer a História e não se deixam comer por parvos. Não estou pessimista quanto ao futuro da leitura ou do país, mas estou apreensivo, claro, porque conheço alguma coisa da natureza humana para saber que ela é falível e que é mais facilmente manipulável do que nós desejaríamos. Uma forma de nos protegermos contra essa manipulação é, sem dúvida, a leitura.

Que tipo de pesquisa e preparação fez para escrever as quase 500 páginas deste livro?

Fiz bastante pesquisa, mas este é um romance, não um livro de História. Não tinha qualquer pretensão de escrever a versão definitiva do que se passou nesses anos. Interessam-me sempre as personagens e a pesquisa serve para dar verosimilhança ao universo onde estas se movem. Na pesquisa, estou sempre à procura de coisas que aproveitem às minhas personagens – um episódio, uma frase, um detalhe -, de forma a poder usá-las para a história que quero contar. Li muitos livros de não-ficção, claro. Sobre esse período há poucos romances. Vi muitos documentários, muitas imagens da época. Por outro lado, mesmo tendo nascido depois do 25 de Abril, sou filho da ditadura e da Revolução. Cresci com pessoas que viveram na ditadura, ela não se extinguiu apenas porque houve uma revolução, persistiu nos modos, na forma de pensar e de agir. Da mesma maneira que os tempos revolucionários do PREC não se extinguiram totalmente no dia 25 de Novembro. Cresci com esse legado e esse imaginário. Era algo muito familiar. A forma de falar, as referências, as disputas, os desagravos, a mitologia dessa época.

O Hugo nasceu em 1976 e cresceu numa fase em que o país caminhava já para uma democracia consolidada. Ao trabalhar este romance ficou, em algum momento, com pena de não ter vivido todas as incidências revolucionárias?

Imagino que tenha sido incrível. Um tempo sem sono, numa semana viviam-se dez anos. Tenho conhecido leitores que me falam da experiência, não apenas política, mas pessoal. Não nos esqueçamos que foi um período também de expansão das liberdades individuais, do experimentalismo, da música, das drogas, do sexo, da cultura, do rock, de tudo. Mas sou bastante pragmático e gosto do tempo em que vivo. No entanto, tenho o privilégio de poder viver o período retratado no livro através da imersão na escrita. Costumo dizer que, de manhã, depois de passear o cão, de levar o meu filho à escola, de estar um pouco com a família, entro no meu escritório para escrever e é como se subisse a bordo da máquina do tempo e do espaço.

Com livros como «Deus Pátria Família» ou «Revolução», diria que se aproximou da chamada ficção histórica, ou este termo pode ser aplicado, de uma forma ou outra, a todas as suas obras?

Escrevo ficção, não só, mas também. No caso dos livros mencionados, queria escrever algo que tivesse verdade, que fosse cativante, que agarrasse os leitores pelos colarinhos e que funcionasse como a literatura costuma funcionar, por identificação, por empatia, como aventura. Nunca penso se estou a fazer ficção histórica ou não. Já escrevi um livro que era uma espécie de distopia, num lugar e num tempo que não existiam. Posso até escrever um livro de ficção científica sobre o futuro. Os géneros existem, para mim, como ferramentas para contar algo. Não penso muito se a ficção é histórica ou não, apenas quero contar uma boa história, com profundidade psicológica e aprumo na escrita.

Consegue discernir o jornalista e o viajante nas linhas dos seus romances, ou deixa essas análises para terceiros?

Já não sou jornalista há 10 anos. Deixei de ter carteira profissional. Certamente há algo em mim do jornalista que escreveu crónicas e reportagens durante anos. Da mesma maneira que há em mim muitas outras coisas. Quando estou a escrever, não compartimentalizado, não me vejo como jornalista ou guionista ou romancista. É uma atividade para a qual converge todo o meu conhecimento, toda a minha vontade, tudo o que tenho. A escrita é um ofício, talvez seja também uma identidade, mas mais que tudo é um ofício. E nele utilizo todas as ferramentas à minha disposição, aquelas que aprendi no jornalismo, enquanto cronista, enquanto romancista. Nada disso é racional, da mesma maneira que um morcego não pensa que está a usar um sonar quando se desvia de um poste.

 

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