Programa de Intercâmbio Hipócrates na Suécia – Relato de Experiência de Maria Branca Cunha

O programa Hippokrates Exchange é um programa de intercâmbio para médicos internos em Medicina Geral e Familiar e recém-especialistas, até 5 anos após a conclusão da formação especializada. O programa é apoiado pela WONCA e pela European Academy of Teachers in General Practice (EURACT). O objetivo é incentivar o intercâmbio e a mobilidade entre jovens médicos no decurso da sua formação profissional, proporcionando, assim, uma perspetiva mais ampla dos conceitos de Medicina Geral e Familiar.

O programa consiste num intercâmbio de 2 semanas em qualquer país europeu que apresente disponibilidade para nos receber, onde o médico visitante acompanhará a prática clínica do médico anfitrião, durante o qual este obterá uma introdução ao papel da Medicina Geral e Familiar no respetivo país. Escolhi a Suécia por me parecer ter um sistema de saúde bem organizado, que serviu de inspiração para o sistema português, que considero ser, também, um bom sistema.

Fui gentilmente recebida na cidade de Borås, onde estive entre os dias 9 e 20 de dezembro de 2024. O centro de saúde onde fiz o meu intercâmbio chama-se Närhälsan Södra Torget Vårdcentral e o meu anfitrião foi o Dr. Adebayo Sanusi. Borås é uma cidade do município de Västra Götaland, na costa ocidental da Suécia. Tem aproximadamente 114.556 habitantes. A cidade é amplamente conhecida por ser uma cidade têxtil, onde se encontram marcas e empresas de todo o mundo, bem como a prestigiada Escola Sueca de Têxteis, que faz parte da Universidade de Borås. A cidade situa-se a cerca de 60 km de Gotemburgo, que é a segunda maior cidade da Suécia, facilmente acessível através de um sistema de transportes públicos muito eficiente.

Para além de ser conhecida como a capital da moda na Suécia, é também famosa pela enorme coleção de streetart, enchendo as ruas de cores vibrantes. Os cuidados de saúde na Suécia são descentralizados, o que significa que a responsabilidade pela organização e prestação de serviços de saúde, bem como pela atribuição de recursos, cabe aos conselhos regionais (21 regiões no total).

A região onde fiquei, Västra Götaland, tem 17 hospitais, 121 centros de saúde e 170 centros de clínicas dentárias públicas. Alguns cuidados são prestados por centros privados sob contrato com o sistema público regional. Os centros de saúde orientam as doenças mais comuns e dispõem frequentemente de uma clínica pediátrica, uma clínica pré-natal e um centro de reabilitação física. Os centros de saúde também oferecem apoio psicológico e ajudam a implementar modificações de estilo de vida (por exemplo, cessação tabágica e alcóolica, aconselhamento nutricional e de exercício físico, etc.) através de health coaches.

As consultas de planeamento familiar e de gravidez são realizadas por enfermeiras especialistas na clínica pré-natal, integrando também o centro de saúde. Além disso, existem clínicas públicas de cuidados dentários nos centros de saúde, para cuidados dentários gerais. Todos os cidadãos de Västra Götaland têm direito a cuidados dentários gratuitos até aos 23 anos de idade, quer em serviços dentários públicos, quer em privados.

No centro Närhälsan Södra Torget Vårdcentral há 10 médicos de família, 10 enfermeiras, 2 assistentes de enfermagem, 3 funcionárias administrativas e 1 analista clínica. Este centro de saúde serve uma população de cerca de 10.000 pessoas. Durante os dias úteis, os médicos de família trabalham das 8 às 17 horas. Há também uma equipa de urgência rotativa entre os vários centros de saúde da cidade que fica operacional até às 22 horas e durante os fins-de-semana, das 10 às 16 horas. Nos períodos em que os centros de saúde não estão a funcionar, o utente deve dirigir-se ao serviço de urgência do hospital mais próximo.

As consultas são de diferentes tipos. Podem ser presenciais, por telefone ou por vídeochamada. Existe também a possibilidade de falar com um médico por mensagem ou por email. Estas consultas podem ser de rotina, normalmente para doentes com patologias crónicas, ou de reavaliação após uma situação aguda. Os utentes habitualmente colhem sangue e/ou urina para análise antes da própria consulta, que são agendadas e efetuadas no próprio laboratório do centro.

Em contraste com o sistema de saúde português, onde os utentes com hipertensão e/ou diabetes têm consulta de vigilância duas vezes por ano, aqui os doentes com hipertensão são vistos de dois em dois anos (dependendo do controlo da sua pressão arterial) e os doentes com diabetes são vistos de 9 em 9 meses, uma vez pelo médico e outra vez por uma enfermeira especialista em diabetes. Tive a sorte de assistir a uma das consultas de enfermagem, dirigidas ao utente com diabetes. A enfermeira especialista ocupou uma hora inteira de consulta para promover, essencialmente, uma maior confiança na autogestão desta patologia. Uma grande parte da consulta centrou-se nas modificações do estilo de vida, como o ajuste da dieta do doente e o incentivo à prática de exercício físico. Além disso, examinámos os pés e analisámos os resultados das análises ao sangue e à urina, que o doente tinha colhido previamente à consulta.

Dois/três períodos de consultas por semana (manhã ou tarde) são reservados para consultas abertas. Em primeiro lugar, os utentes que pretendem uma consulta são contactados pela enfermeira, responsável por realizar a triagem. Se se tratar efetivamente de uma situação aguda que possa ser orientada pelos cuidados de saúde primários, a enfermeira agenda uma consulta no tempo reservado para as situações agudas, na maior parte dos casos no próprio dia. Se necessário, podem também ser pedidas análises ao sangue e/ou urina, bem como eletrocardiograma, para que, quando o utente for observado pelo médico, este possa já verificar se existem alterações, nomeadamente elevação dos parâmetros inflamatórios ou presença de disfunção de órgão. Se houver suspeita de doença infeciosa, mais comummente infeção do trato respiratório ou gastrointestinal, o utente é avaliado numa sala de isolamento, totalmente equipada com todo o material necessário, para minimizar o contacto com outros doentes, evitando, assim, a transmissão.

Os médicos de família contactam regularmente os utentes que estão sob Certificado de Incapacidade Temporária (CIT) e marcam consultas de reavaliação, quer presencialmente, quer por via telefónica ou por vídeochamada, para avaliar a sua situação e capacidade de retomar as suas funções laborais. A Suécia tem um sistema de redução progressiva da percentagem de absentismo, incentivando os utentes sob CIT a regressarem, gradualmente, ao trabalho a tempo inteiro, se possível.

Quando o doente está sob CIT por motivos profissionais, este deve agendar uma consulta com um médico de Medicina do Trabalho, que é responsável pela visita ao local de trabalho e pela otimização das condições ergonómicas. Há também uma sala para observação oftalmológica e de ORL. Pude assistir à cauterização de epistaxe anterior, utilizando uma tira de nitrato de prata. Além disso, utilizámos a sala para observar utentes com queixas oculares, como dor, rubor ou prurido, onde avaliamos a conjuntiva e excluímos a presença de corpo estranho.

Realizámos também pequenos procedimentos invasivos, nomeadamente: biópsia de uma lesão cutânea para análise patológica, após a realização de dermatoscopia; administração de uma injeção de corticóide num doente com síndrome doloroso do ombro por patologia inflamatória; realização de uma retoscopia num doente com alteração do trânsito intestinal, antes de encaminhar para um especialista gastrointestinal para realização de colonoscopia. É com base nos achados do reto/proctoscopia que, quem faz a triagem dos pedidos de consulta hospitalar, define a urgência com a qual o utente tem de ser avaliado pela especialidade.

Alguns médicos de família ficam responsáveis pela clínica pediátrica, que efetua consultas de rotina a crianças com 4 semanas, 3, 6, 12 meses e 3 anos de idade. Tive a oportunidade de passar uma manhã na clínica pediátrica, que é dirigida por um médico de família (com horário rotativo) e uma enfermeira especialista em pediatria. Durante a consulta, avaliamos o desenvolvimento estaturo-ponderal e psico-motor, a vacinação, a diversificação alimentar e eventuais preocupações dos pais, nomeadamente com o desenvolvimento da linguagem, o tempo de ecrã e as rotinas de sono. Entretanto, se a criança adoecer, deve ser observada numa das vagas para consultas aberta e não na clínica pediátrica, sendo esta exclusivamente para consultas de rotina.

Outros médicos de família ficam responsáveis por realizar consultas em lares de terceira idade associados ao centro de saúde. Habitualmente, são feitas 2 a 3 visitas semanais aos vários lares na proximidade do centro de saúde. Em caso de dúvidas específicas, o médico de família pode contactar diretamente o hospital e pedir para falar com um médico de uma determinada especialidade. Em menos de um minuto, estamos em contacto com um especialista de uma área diferente e podemos esclarecer a nossa dúvida. Em alguns casos, há necessidade de encaminhar o doente para cuidados hospitalares especializados ou mesmo para o serviço de urgência.

A minha experiência no sistema de saúde sueco permitiu-me compreender que o trabalho de um médico de família na Suécia é diferente do de um médico de família em Portugal, pois inclui tarefas que exigem um conhecimento mais profundo do diagnóstico e do tratamento de problemas de saúde nas várias faixas etárias. Isto significa que a maioria das pessoas com problemas de saúde mais comuns são orientadas apenas por médicos de família. O que também me fascinou foi o facto das unidades de cuidados primários estarem equipadas com material de pequena cirurgia e com um laboratório próprio, bem como exames como eletrocardiograma e provas funcionais respiratórias. Este facto contribui, obviamente, para um contexto de cuidados de saúde primários mais forte e autossuficiente, limitando os encaminhamentos hospitalares ao estritamente necessário.

Adicionalmente – e esta foi uma das grandes razões por ter escolhido este país para realizar o meu intercâmbio – a Suécia é conhecida por ter um bom equilíbrio entre a vida profissional e pessoal, o que me deixou curiosa para ver como isso é implementado na prática, nomeadamente nas unidades de saúde. O conceito Fika, internacionalmente conhecido, significa uma pausa para café com amigos e/ou colegas. De facto, diariamente fazíamos duas pausas para Fika, cujo tempo está reservado na própria agenda dos profissionais, para que todos se reúnam na copa para um momento de convívio, em que bebemos um café/chá e, nesta altura do ano, comemos bolachas de gengibre. Adicionalmente, às sextas-feiras, a primeira pausa para Fika convertia-se num pequeno-almoço em conjunto, com comida oferecida pela unidade e, muitas vezes, temático, dependendo da altura do ano. Por ser altura do Natal, tive também a oportunidade de ser convidada para o almoço de Natal da unidade, em que celebramos com comida típica e canções natalícias suecas.

A mais-valia do intercâmbio é equivalente a todas as aprendizagens efetuadas, resultando em muito mais do que apenas duas semanas. O contacto com culturas diferentes promove o desenvolvimento pessoal e beneficia todo o percurso profissional que se segue. Para além da partilha de conhecimentos, as experiências internacionais permitem aprender mais sobre o que se faz de diferente noutros países. Não só porque os recursos disponíveis são diferentes, mas também porque a visão das mais diversas situações é influenciada pelo ambiente em que se vive. O programa Hippokrates Exchange permite-nos quebrar barreiras através da colaboração de diferentes profissionais, motivando-nos a ser e a fazer melhor.

Gostaria de aproveitar esta oportunidade para agradecer à WONCA, à EURACT e à Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF) por criarem oportunidades enriquecedoras como estas, e à Inês Castro, a Exchange Coordinator portuguesa, que me motivou a fazer o intercâmbio e me ajudou a organizá-lo. Para além disso, gostaria de agradecer a toda a equipa do Närhälsan Södra Torget Vårdcentral pelo acolhimento muito caloroso, e um agradecimento especial ao Dr. Adebayo Sanusi por ter aceitado o meu pedido e por ter partilhado comigo alguns dos seus grandes conhecimentos e experiência clínica.

Gostaria também de aproveitar esta oportunidade para motivar os meus colegas a participarem nestas iniciativas, tanto nacionais como internacionais, pois são experiências que enriquecem muito as nossas vidas, tanto a nível pessoal como profissional.

Maria Branca Moura Cunha

 

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