Entre 3 e 14 de novembro de 2025 realizei um estágio internacional em Medicina Familiar e Comunitária (MFC), no Centro de Saúde da Tapera, em Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, juntamente com a minha colega Ana Sintra Coelho. A principal motivação para este intercâmbio residiu na necessidade de conhecer um modelo de Cuidados de Saúde Primários (CSP) distinto do português, nomeadamente o sistema de Atenção Primária à Saúde (APS) brasileiro, que é mundialmente reconhecido pela sua forte vertente comunitária e pelo papel da Estratégia Saúde da Família. O objetivo central foi comparar a organização dos cuidados, a gestão da procura e o âmbito de prática clínica no contexto do Sistema Único de Saúde (SUS).
A Experiência em Campo: Florianópolis
Florianópolis, sendo um dos municípios pioneiros a exigir a especialização em MFC para trabalhar nos seus Centros de Saúde, revelou ser o cenário ideal para este estudo comparativo. A experiência permitiu uma imersão completa na dinâmica de uma Unidade de Saúde da Família.
Organização dos Cuidados e Diferenças Estruturais
O modelo de trabalho no Centro de Saúde da Tapera é notavelmente organizado por área de residência, sendo o Agente Comunitário (AC) o elo de ligação vital entre a equipa e a população.
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A Gestão da Procura: Contrariamente à rotina maioritariamente programada em Portugal, o turno iniciava-se com a Consulta Aberta (demanda espontânea), evidenciando a necessidade de uma resposta rápida e flexível à população. Embora o tempo médio de consulta fosse de cerca de 20 minutos, os internos de MFC dispunham de uma agenda própria com maior tempo, focada no raciocínio clínico e na formação.
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O Papel Alargado da Equipa: A articulação entre médico e enfermeiro é regida por Protocolos (PACK Brasil), concedendo ao enfermeiro grande autonomia para realizar consultas, efetuar citologias, tratar vulvovaginites e renovar medicação crónica (exceto insulina).
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Recursos Diferenciados: a unidade demonstrou uma estrutura abrangente, incluindo Odontologia (dentistas), psicóloga, técnico de exercício físico, nutricionista e farmacêuticos – com uma farmácia que providencia medicamentos de forma gratuita (Farmácia Popular).
Inovação e Abordagens Específicas
A observação de práticas clínicas e de gestão de saúde pública em Florianópolis destacou-se pela sua inovação e abrangência:
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Consultório na Rua (CNAR): Acompanhei a equipa do CNAR na sua intervenção itinerante a pessoas em situação de rua, um modelo exemplar de equidade e atenção integral a populações vulneráveis.
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Ambulatório Trans: A observação deste serviço especializado confirmou o foco da APS em cuidados centrados na pessoa, adaptando-se a necessidades específicas da comunidade.
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Práticas Integrativas e Complementares (PICS): O uso de Acupuntura e Auriculoterapia, e a organização de grupos de Yoga e Pilates, demonstrou o compromisso do SUS com uma abordagem holística e o uso de métodos terapêuticos não farmacológicos para a gestão da dor e saúde mental.
Competências Clínicas e Procedimentais
Um dos ganhos formativos mais concretos foi a observação da elevada autonomia de procedimentos do Médico de Família e Comunidade brasileiro. Pude acompanhar a realização de pequenos gestos cirúrgicos (remoção de nevus e drenagem de abcessos), infiltrações e lavagens auriculares, competências que enriquecem o leque de atuação da APS. A rotina clínica também incluiu a observação do protocolo de acompanhamento pré-natal , diferente do português, e a gestão de patologias infeciosas.
Conclusão e Reflexões para a MGF Portuguesa
O estágio em Florianópolis foi um momento de profunda reflexão crítica sobre os modelos de gestão e a prática clínica em MGF/MFC. A principal aprendizagem reside na força da Medicina Comunitária e no vínculo criado pelo Agente Comunitário. O modelo brasileiro é particularmente eficaz na resposta à doença aguda e na garantia do acesso, focando-se na proximidade e na equidade. A forte aposta nas PICS e nos grupos de promoção de saúde (Dor Crónica, Saúde Mental, Atividade Física, Nutrição) também se apresenta como uma mais-valia para a gestão não-farmacológica da doença crónica.
Desafios e Comparações
A observação de que o tempo de consulta mais curto e o elevado volume de procura aguda podem, por vezes, levar a um acompanhamento menos sistemático das doenças crónicas de baixo risco sugere que, embora o acesso seja superior, a longitudinalidade e a continuidade podem ser mais desafiantes do que no modelo português (USF).
Reflexão Final
Termino esta formação com um conhecimento mais vasto sobre as possibilidades da MGF. A experiência no Brasil não só enriqueceu a minha prática clínica com o contacto com procedimentos mais autónomos, como, sobretudo, aprofundou a minha convicção na importância de uma Medicina de Família mais holística, ativista e centrada na comunidade, tal como discutido no seminário sobre Prevenção Quaternária, que encerrou este período formativo.
Regresso com uma nova perspetiva sobre o potencial da nossa especialidade em Portugal e sobre as oportunidades de integração de modelos de intervenção comunitária.
Mariana Trindade (Médica Interna de Formação Especializada em Medicina Geral e Familiar, USF Coimbra Norte – Centro de Saúde de Eiras – ULS Coimbra)



















