Na reunião magna da MGF, o Encontro Nacional, que este ano na 42ª edição reúne mais de mil participantes em Tróia, o presidente da APMGF, Nuno Jacinto, caracterizou a conjuntura atual do sistema de saúde português e dos cuidados de saúde primários (CSP), que envolvem os médicos de família (MF) portugueses, avançando que esta pode ser adjetivada com uma palavra, instabilidade: “tivemos a extinção das ARS, uma mudança de liderança na Direção Executiva do SNS, um novo plano de emergência no qual um dos eixos estratégicos era a saúde próxima e familiar e para o qual não fomos ouvidos, ULS universitárias que estão a ser reavaliadas após terem sido criadas alguns meses antes, nova mudança na Direção Executiva do SNS com outras competências, substituição das lideranças nas ULS e avanço para as parcerias público-privadas (PPP), não só nos hospitais, mas também nos centros de saúde (…) Perante tudo isto, a imagem que passa é que temos um sistema de saúde desgovernado, rumo ao abismo, de onde muitos querem sair e onde poucos querem entrar”. Acrescem, segundo o presidente da APMGF, algumas movimentações e conceitos estranhos que invadem a vida de quem atua nos CSP em Portugal: “todos nos lembramos de um ministro que pensou que podíamos reduzir a qualidade da nossa formação, da ideia peregrina de atribuir listas de utentes a médicos sem especialidade e estamos bem cientes do período que vivemos, no qual temos centros de saúde a distribuir produtos de incontinência e para dignidade menstrual. Face a estas situações caricatas, é justificado que fiquemos assustados e perdidos, que nos sintamos abandonados. Vai ser difícil manter o deslumbramento e a vontade de acreditar”.
Mas é essencial conversar a motivação para superar obstáculos e Nuno Jacinto preferiu encerrar a intervenção com uma nota de razoável otimismo: “cabe-nos a nós, ou a outros que virão, dizer que ainda estamos aqui. O caminho está claramente identificado e como disse a Senhora Ministra da Saúde recentemente num programa de televisão, os CSP não são uma nota de rodapé. Mas para que tal seja uma realidade, precisamos de ser ouvidos e envolvidos nas decisões. Os MF devem ter um papel ativo na construção de soluções para os problemas dos CSP”.
Já o bastonário da Ordem dos Médicos (OM), Carlos Cortes, dirigindo-se à audiência, quis apesar de tudo elevar os méritos e as conquistas da MGF que superam as dificuldades momentâneas: “sei que muitos de vós estão desmotivados, desanimados com que está a acontecer à vossa especialidade, mas tomara eu que muitas outras especialidades médicas apresentassem o vosso caminho de exigência na formação clínica, na prestação de cuidados de saúde e na humanização de cuidados”.
A propósito das condições de trabalho atuais dos MF e das transformações (nem sempre positivas) que têm afetado o quotidiano destes profissionais, o bastonário quis deixar um pedido à ministra da Saúde presente no arranque do evento: “não deixe que o hospitalocentrismo que está a acontecer nas ULS destrua os CSP”. O dirigente defendeu também a necessidade de implementar medidas especiais no presente, porque “é urgente salvar a especialidade da MGF e outras com cariz semelhante. Temos de ter um plano de atratividade que permita trazer os médicos para o SNS e dar-lhes um projeto de carreira”.
Por último, Carlos Cortes mostrou-se intransigente numa área que é central para a Medicina e para a MGF, a exclusividade de competência na prescrição de terapêuticas e meios complementares de diagnóstico: “a última coisa que queria ver no meu país era ter doentes a serem tratados e diagnosticados num estabelecimento que vende medicamentos”.
Na abertura dos trabalhos, a ministra da Saúde Ana Paula Martins, reconheceu no que concerne às ULS que há um longo caminho de análise por concluir: “a estabilização do modelo ULS passa por garantir que o modelo funciona e ele pode funcionar em alguns locais e noutros não. Temos de olhar para este facto não como um insucesso, mas como um processo em que procuramos ajustar o que não está bem”.
Sobre o decurso das transformações registadas nos CSP, Ana Paula Martins assegurou que nenhuma decisão tomada nos últimos tempos está gravada em pedra e que o próximo governo terá a responsabilidade de analisar o que está para trás e como avançar daqui em diante: “admito que é preciso avaliar experiências que possam trazer dano ao que funciona bem. O facto de termos avançado com 20 USF modelo C, que estão a ser estruturadas neste momento, não deve ser interpretado de forma alguma como uma experiência que pretende ser alternativa ao modelo B”.
A governante, que integra um executivo de gestão, declarou que “ninguém que venha a assumir funções daqui a alguns meses poderá conviver com a pressão de ter cada vez mais pessoas sem uma equipa de saúde de proximidade atribuída, sendo que no último ano foram mais 173 mil. Isto é completamente impossível de gerir! (…) Ajudem-nos a encontrar as melhores soluções para conseguirmos dar resposta sobretudo àqueles que mais precisam. A MGF foi sempre muito construtiva e por isso peço-vos que ajudem o país a encontrar esse caminho”.
Durante a conferência de abertura, o bioquímico e divulgador de ciência David Marçal garantiu que “comunicar ciência não é fácil e não tem uma resposta única, é um assunto complexo e por isso é que representa um grande tema de investigação desde há várias décadas”. Ainda assim, o conferencista arriscou lançar algumas dicas sobre como poderão as pessoas mais ligadas à ciência e a medicina trilhar este caminho espinhoso: “é fundamental dialogar com os outros especialistas científicos de outras áreas, porque há outros saberes válidos e precisamos de todo o conhecimento para nos «salvarmos» (…) devemos estar disponíveis para falar com os jornalistas. Mesmo que o jornalista em causa nos suscite problemas ou desafios, é melhor que haja alguma interação do que nenhuma. Temos de explicar o processo científico e não apenas os resultados, já que de outra forma a ciência passa a ser vista como uma caixa mágica, algo de onde pode sair também a pseudociência e as terapias alternativas”. Por último, David Marçal frisou que por muito incómodo que seja lidar com pessoas e ideias irritantes e falsas, por mais difícil que seja trabalhar num campo onde é incontornável a incerteza natural no progresso da ciência, quem está do lado do método científico não pode baixar os braços: “não podemos desistir e deixá-los a falar sozinhos!”.