A romancista Dulce Maria Cardoso admite sem pudor, entre as reflexões deixadas numa das suas entrevistas mais íntimas, que olha com particular atenção para os excluídos: “eu acho que o meu trabalho todo é sobre os excluídos. É sempre sobre os que ficam nas margens, os que não se encaixam, os que são humilhados”. Ora Violeta, narradora e personagem central do romance «Os meus sentimentos», é um perfeito arquétipo disso mesmo, criatura incompreendida e fora das normas, mulher objeto de recusa nos múltiplos domínios da sua existência, que alcoolizada se vê envolvida num acidente rodoviário grave e, de cabeça para baixo na viatura, estilhaços de vidro como única companhia, presa apenas pelo cinto de segurança e no momento de uma morte quase certa, olha para trás e recorda o seu último dia de vida, efabula histórias sobre como os outros seguirão caminho após o seu desaparecimento, ao mesmo tempo que insiste no pensamento inútil: não devia ter saído de casa!
O leitor do Clube de Leitura APMGF, esse, não terá felizmente de sair de casa para apreciar «Os meus sentimentos», de Dulce Maria Cardoso, livro que será comentado na próxima sessão do Clube de Leitura APMGF, agendada para 15 de abril, pelas 21h00 e que terá como médicos mediadores Andreia Esteves e Alexandre Freitas e como dinamizadora a agente literária e publisher Rita Fazenda. A participação no Clube de Leitura está sujeita a inscrição prévia, é gratuita para os sócios da APMGF e tem um custo de 35 euros para não sócios (valor que permite participar no ciclo integral). No final do ciclo, todos os participantes do Clube de Leitura que tenham assistido às sessões em direto receberão um diploma de participação entregue pela APMGF.
Dulce Maria Cardoso pertence a uma restrita classe de escritores verdadeiramente lusófonos, já que habita o espaço da grande língua portuguesa que transpõe fronteiras e continentes. Embora tenha nascido em terras transmontanas, na década de sessenta do século passado, mudou-se com a família para Luanda quando ainda não articulava palavra. Regressou a Portugal na ponte aérea de 1975, já com memórias e imaginário de África, sem que ninguém conseguisse conter o que tinha para dizer. No período pós-revolucionário aprendeu a ser cidadã com voz ativa, interessada em denunciar injustiças e gritar liberdade, passou pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e endireitou-se enquanto pessoa na escrita. O seu romance de estreia surge em 2001, intitulado «Campo de sangue», ao qual sucedeu o relevador «Os meus sentimentos» – Prémio da União Europeia para a Literatura – e depois «O chão dos pardais», «O retorno» e «Eliete». Da sua pena saíram também as antologias de contos «Até nós» e «Tudo são histórias de amor» e os dois volumes de literatura infantil «A bíblia de Lôá», bem como a «Autobiografia não autorizada», que reúne as crónicas de sua autoria publicadas na revista Visão. Tem obra traduzida e editada em quinze países e vários dos seus contos e romances foram convertidos em expressões artísticas autónomas de cinema e teatro.
Mas regressemos a «Os meus sentimentos», narrativa com estilo, construção e estrutura invulgares, que saltita entre intervalos de ação temporais e contém um discurso fluído e desligado de muitas das normas gramaticais a que nos habituámos, mais próximo de uma oralidade que nos soa familiar e, em simultâneo, estranha. Fruto quiçá, das condições em que se suspende (literalmente) a narradora, amarrada à realidade semiconsciente da antecâmara da morte. “Este é um livro cuja narrativa é o discurso de uma pessoa sobre si mesma. É o mais semelhante que encontramos à nossa consulta: uma janela que nos permite espreitar para as vivências de alguém e com ela construir uma visão sobre a sua própria vida e refletir sobre a condição humana. Além disso, por ser abrangente nos seus temas, permite que cada leitor possa trazer as partes que mais lhe tocam para a discussão”, avança Alexandre Freitas, um dos responsáveis pela escolha da obra. Andreia Esteves acrescenta que a seleção deste romance se deveu à “abundância de pontos de partida para discussão num clube de leitura para médicos de família – ao longo da história, faz-nos refletir sobre a fragilidade da vida humana, o impacto das nossas relações familiares, a vivência individual com a imagem corporal e a saúde, a relação com o álcool, a pressão social com as normas, a nossa relação com o trabalho… O livro oferece-nos pontes para momentos da nossa vida pessoal ou das vidas que por nós passam enquanto médicos de família. Por outro lado, o estilo de escrita foi também um motivo de escolha. Capta-nos para o discurso livre dos pensamentos a fluir na mente humana, dando forma a uma verdadeira narrativa na primeira pessoa, como se pudéssemos ouvi-la a pensar”.
Na perspetiva de Andreia Esteves, o estilo discursivo aqui identificado, pelo facto de ser “contínuo, sem reparos nem censura de pensamentos intrusivos, torna-se brutal e intenso, com elementos visuais que chegam a mexer com as nossas emoções”. A carga emocional é, sem dúvida, um elemento incontornável neste livro, como sugere Alexandre Freitas: “é um estilo de grande intensidade emocional, o que, combinado com a subjetividade da narrativa permite uma experiência muito sensorial. Com isto, penso que cada um de nós sente coisas muito diferentes em diversos momentos do livro, fruto das nossas próprias experiências passadas e dos nossos valores. Esta diversidade permitirá uma discussão mais rica”.
As personagens que povoam este romance são reais, com muitas falhas e descrenças. Na opinião de Andreia Esteves, esta é uma preferência da escritora que marca pontos junto do leitor: “a «imperfeição» das personagens é uma das coisas que mais me prende na leitura deste livro, e é paradoxalmente um facilitador da leitura para mim. Especialmente enquanto médica de família, com um lugar privilegiado de conhecimento sobre as vidas das pessoas, reconheço que a «imperfeição» é um estado inerente à vida humana”. Por seu turno, Alexandre Freitas sugere que Violeta corporiza uma lição importante para todos quantos cuidam e têm de ouvir para cuidar: “o verdadeiro desafio é sentir empatia por alguém com cuja visão temos dificuldade em concordar. E é exatamente esse o desafio que encontramos nas nossas consultas. É fácil ser empático com pessoas «perfeitas» quando, muitas vezes, quem precisa mais da nossa empatia são aquelas que são imperfeitas. Para as ajudarmos a ultrapassar as suas dificuldades e não sermos só mais alguém que passa pela sua vida para as julgar”.