Sempre tivemos muito interesse sobre a maneira como os cuidados de saúde primários funcionam nos diferentes países da União Europeia. Esta curiosidade foi amplificada pela participação no 8th EYFDM Forum 2024 em Viena, onde conhecemos vários colegas desses países, com quem tivemos oportunidade de discutir e cruzar as diferenças entre as nossas realidades. Daí saiu mais consolidada a já existente vontade de realizar um estágio no estrangeiro.
Escolhemos a Irlanda por acharmos importante fazer o estágio num país onde compreendêssemos a língua, para conseguir acompanhar melhor as consultas, e como nesse ano se realizava o WONCA Europe na cidade de Dublin pareceu-nos perfeito. Começámos a estadia na Irlanda a participar na conferência, onde junto com outros colegas tivemos posters apresentados e dinamizamos uma comunicação oral.
Na semana seguinte começou o nosso estágio de um mês numa clínica com dois polos, na mesma cidade. Esta experiência não só nos proporcionou uma oportunidade única de aprendizagem, como também permitiu uma comparação enriquecedora entre os sistemas de saúde de Portugal e da Irlanda, especialmente no que diz respeito à prática da Medicina Geral e Familiar (MGF).
O estágio revelou várias diferenças notáveis entre os dois sistemas, principalmente no que diz respeito ao acesso, à organização e ao financiamento dos serviços de saúde, bem como ao papel do médico de família. Na Irlanda, o sistema de saúde é caracterizado por uma dualidade entre o setor público e o privado. O acesso a todos os cuidados é feito através dos médicos de família, conhecidos como GP (General Practitioner), mas ao contrário de Portugal, o acesso aos mesmos é maioritariamente mediante pagamento da consulta pelo utente. A entrada no sistema nacional de saúde irlandês (HSE) é feita através do médico de família, tendo o utente de pagar esse primeiro contacto, salvo casos específicos. Tal como em Portugal, na Irlanda o utente apenas tem seguimento em consultas hospitalares nos hospitais públicos após referenciação do médico de família.
No entanto, ao contrário de Portugal, o sistema de saúde irlandês também exige um pedido de consulta do GP para o utente ter acesso a consultas e exames em hospitais privados. Em Portugal, o sistema público de saúde, o SNS, garante sempre o acesso aos cuidados de saúde primários e secundários de forma universal e gratuita. Já o HSE apenas comparticipa cuidados de saúde a menores de 8 anos, a maiores de 65 anos e a um grupo restrito da população que preencha critérios de insuficiência económica, definidos a nível nacional.
Na Irlanda, os médicos de família são remunerados por consulta, o que resulta numa gestão de tempo e número de utentes bastante diferentes do que se observa em Portugal, onde os médicos de família têm uma carga de trabalho e horário predefinidos.
Notámos grandes diferenças na relação entre o médico e o utente nos dois países. Na Irlanda, o tratamento é mais impessoal e distante, a pressão para consultas rápidas por sua vez pode afetar a qualidade do tempo dedicado a cada utente, que culturalmente está tão habituado a que a consulta seja um período curto que por vezes não se chega a sentar, havendo uma abordagem muito diferente dos doentes em Portugal. A clínica onde realizámos o estágio tinha regras pré-definidas para as consultas: deviam ter uma duração máxima de 15 minutos e a agenda do doente só podia ter, no máximo, 2 assuntos. Para além das diferenças na abordagem por parte do clínico, esta regra também obriga o utente a priorizar as suas queixas e preocupações em cada consulta.
Outra grande diferença na relação médico-doente é que o doente, ao marcar consulta, pode escolher um dos médicos da clínica e não ser sempre atendido pelo mesmo, mediante a preferência ou disponibilidade. Já em Portugal, a relação de confiança e continuidade entre o médico de família, o utente e a sua família são mais valorizadas, apesar da escassez de médicos em algumas regiões do país serem desafios que comprometem um acompanhamento personalizado.
Este estágio em Dublin proporcionou-nos uma valiosa experiência, permitindo-nos expandir os horizontes profissionais e aprender novas abordagens para a prática da MGF. É satisfatório constatar que, embora existam diferenças claras entre os sistemas de saúde dos dois países, é evidente que ambos partilham o mesmo objetivo de oferecer cuidados de saúde de qualidade à população e é importante reconhecer que nas diferenças surgem novas maneiras de alcançar os mesmos objetivos. A troca de experiências entre os vários sistemas é fundamental para a contínua melhoria e avanço dos cuidados primários. Ambos os sistemas têm muito a aprender um com o outro.
A experiência foi também uma oportunidade para fortalecer competências de comunicação com os utentes, visto que, embora o idioma fosse o inglês, as questões de saúde e as preocupações dos pacientes foram facilmente compreendidas e respeitadas. Comprovámos que a confiança e a empatia são fundamentais em qualquer sistema de saúde, independentemente do contexto cultural ou da organização do serviço.
Pessoalmente, o estágio foi extremamente enriquecedor, permitindo-nos não só crescer como médicos, mas também como pessoas. Viver e trabalhar em Dublin, uma cidade muito multicultural e com uma grande comunidade emigrante, permitiu-nos um importante crescimento pessoal e desenvolver uma maior capacidade de adaptação, além de enriquecer a nossa prática diária.
Além disso, a experiência internacional permitiu olhar para a MGF de uma forma mais ampla, comparando os desafios que enfrentamos em Portugal com as soluções implementadas noutros sistemas de saúde. A capacidade de identificar boas práticas e de refletir sobre as possíveis melhorias no nosso próprio sistema de saúde foi um enorme ganho formativo que podemos transpor para a nossa prática diária. Esta experiência não só fortaleceu o nosso compromisso com a MGF, como também nos motivou a continuar na busca de novas formas de melhorar o atendimento aos utentes especialmente na área da medicina preventiva e do acompanhamento de doenças crónicas.
Com a partilha da nossa experiência encorajamos todos a aproveitarem oportunidades que alarguem os seus horizontes e promovam o crescimento contínuo da prática da MGF.
Maria Gomes, USF Valflores – ULS São José
Bruno João, USF Magnólia – ULS Loures-Odivelas