O internato médico é uma oportunidade para conhecer realidades diferentes, que nos acrescentam enquanto seres humanos e profissionais de saúde. São Tomé e Príncipe, um país insular com uma economia subdesenvolvida, foi o local escolhido para a realização deste estágio profissional. Em setembro de 2024, em conjunto com mais cinco colegas Médicas Internas de Medicina Geral e Familiar (Dra. Carolina Roldão, Dra. Daniela Sequeira, Dra. Leonor Amaral, Dra. Mariana Fael e Dra. Ana Rita Ribau) partimos para 2 semanas de aventura e com a expectativa de fazer a diferença nos cuidados de saúde primários, além fronteiras!
Contactar e participar nas atividades desenvolvidas num centro de saúde, num país com características diferentes das unidades de saúde em Portugal, e que prestam cuidados de saúde a uma população com características particulares e distintas, foi o grande objetivo do estágio profissional. Identificar e conhecer as áreas de saúde e as necessidades da população, perceber que recursos de saúde e da comunidade estão disponíveis, conhecendo o real acesso dos doentes aos cuidados de saúde, bem como se processa a organização da atividade assistencial e como se adequa a abordagem num país com maior carência de recursos humanos e materiais, escassez de estruturas básicas de saneamento e abastecimento de água potável, desnutrição, pobreza e iliteracia faziam também parte dos objetivos.
São Tomé é uma das ilhas de São Tomé e Príncipe, país localizado na costa equatorial ocidental de África Central. O país apresenta uma população estimada de 220.372 habitantes e a esperança média de vida é de 66,8 anos, muito inferior à média portuguesa. As diferenças entre São Tomé e Portugal são marcadas, estima-se que um terço da população viva abaixo da linha de pobreza internacional e isso traduz-se em condições de vida precárias e saúde não acessível a toda a população.
O sistema de saúde é constituído por centros de saúde e postos de saúde comunitários, bem como um hospital de referência, na capital. Os postos de saúde funcionam como extensões dos centros de saúde, onde se desloca periodicamente um médico e onde se encontra um profissional de enfermagem permanentemente. O modelo de funcionamento dos cuidados é distinto de Portugal, desde logo pelo contexto socioeconómico do país, que torna as dificuldades económicas uma das principais barreiras no acesso à saúde. A maioria das unidades funciona em condições precárias, por deterioração das instalações, falta de equipamentos e medicamentos e carência de recursos humanos.
A formação profissional foi realizada na região centro da ilha, no Centro Policlínico de Água Grande e no Edifício do Programa Materno Infantil. Tivemos oportunidade de acompanhar médicos e enfermeiros na sua prática diária, nomeadamente no Serviço de Urgência, Consulta Programada de Adulto, Consulta de Saúde Infantil, Saúde Materna e Planeamento Familiar. Além das atividades na unidade de saúde, as equipas realizam visitas de campo (as tradicionais visitas domiciliarias em Portugal) e há também atividades desenvolvidas como parte integrante dos planos nacionais que visam o combate a tuberculose, paludismo, VIH e promoção da vacinação.
As consultas de vigilância de saúde infantil, saúde materna e planeamento familiar são maioritariamente realizadas pela equipa de enfermagem, sendo esta a principal diferença em relação com a realidade portuguesa. A consulta médica é, na maioria das vezes, realizada quando há dúvidas ou queixas que justifiquem avaliação médica.
Há uma preocupação crescente com a vigilância das populações vulneráveis, grávidas e crianças. O país conta com um programa de vacinação e um programa de vigilância de saúde materna e saúde infantil, com consultas programadas e registo em boletim de saúde próprio, semelhante ao que usamos em Portugal. Na área do Planeamento Familiar existem já diversos métodos contracetivos disponíveis gratuitamente, sendo administrados ou aplicados pela equipa de enfermagem, e o seu uso monitorizado através de um boletim próprio.
Outro aspeto que distingue os cuidados de saúde da nossa realidade é a orientação para os sintomas agudos e que motivam a vinda à ida às consultas, havendo pouca ênfase para a prevenção, seguimento e vigilância de doenças crónicas. As consultas são de iniciativa do utente, no próprio dia ou agendadas a curta distância. A fraca literacia em saúde é o principal fator que condiciona esta utilização dos serviços de saúde perante uma situação de doença, e menos na perspetiva da prevenção e promoção da saúde.
Embora estejam a ser aplicados esforços para que haja consultas de seguimento no adulto, vigilância de doenças crónicas e implementação de rastreios de cancro, há ainda um longo caminho a percorrer. As barreiras culturais, um sistema de registos clínicos ainda em formato papel, pouco sistematizados, incompletos, desorganizados, e por vezes difíceis de encontrar; a ausência de um sistema de prescrição de exames complementares de diagnóstico (que aumenta o foco na anamnese completa e no exame objetivo detalhado, como principal ferramenta de diagnóstico) ou de prescrição de medicamentos que para nós são de uso comum em Portugal, com todos os entraves que isso acarreta na prestação de cuidados, são os principais obstáculos no seguimento orientado destes doentes.
A juntar a isto destacam-se ainda: as dificuldades de acesso da população, por ausência de meios de transporte próprios ou públicos e a carência económica; a inacessibilidade a medicamentos, por inexistência dos mesmos ou por dificuldade de aquisição, dado o elevado custo e a ausência de apoios estatais na sua comparticipação, levam a uma menor adesão terapêutica e frequentemente ao uso de alternativas, como o recurso a plantas locais, como a folha da planta micócó ou da goiabeira!
O impacto da nossa presença nos cuidados de saúde na ilha foi muito positivo, não só pela aprendizagem bidirecional com os profissionais de saúde, mas também pelo incentivo à literacia em saúde, reforçando a importância das medidas sanitárias, higiénicas e dietéticas na manutenção e preservação da saúde. Os médicos em São Tomé esforçam-se por prestar os melhores cuidados à população, mas muitas vezes a frustração vence, perante a falta de recursos materiais e humanos e que tornam a prestação de cuidados numa batalha difícil e ingrata! Em Portugal estamos habituados a uma Medicina que nos permite optar entre uma vasta gama de meios complementares de diagnóstico e opções farmacológicas. Em São Tomé isso não acontece porque os recursos são, de facto, limitados!
Fora da atividade médica… São Tomé e Príncipe são duas ilhas quentes, pelo calor e clima, mas também pelas pessoas. Há uma simpatia em cada canto, uma disponibilidade em ajudar e uma vontade em nos acolher da melhor maneira que conseguem. Não há problemas sem solução e há sempre alguém ao virar da esquina disposto a ajudar. Afinal, na ilha dos lemas, o “Somos Todos Primos” não fica atrás do “Leve-Leve”. O clima tropical, com praias de areia clara e um mar azul turquesa, nasceres e pores do sol de uma beleza inexplicável e difícil de traduzir em palavras, são a receita para uma vida feliz, por pouco que se tenha. Em São Tomé e Príncipe, sentimos o “leve-leve” todos os dias. É assim que os locais vivem! De uma forma tranquila, saboreando a vida a um ritmo leve, sem pressas!
Apelidei carinhosamente São Tomé, como a ilha dos sorrisos! Porque apesar da pobreza que vimos e nos deixou de coração apertado, havia um sempre um sorriso! Havia sempre uma correria de crianças à nossa volta a pedir uma fotografia, um abraço ou um “doce-doce”. Havia sempre um adulto que nos abordava como “São voluntárias aqui na ilha? Obrigado pelo que fazem por nós!”. É um país realmente pobre, é! E quem vai, tem de ir preparado para isso, mas é um país rico em gente feliz (e leve-leve)!!