No âmbito do ciclo de debates «Para além da Medicina: ao encontro das humanidades», realizou-se na sede da APMGF em Lisboa, a sessão «Um homem na cidade», com moderação de Armando Brito de Sá (especialista em MGF e ex-docente da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa) e com intervenções de Maria Filomena Molder (filósofa e professora catedrática emérita da Universidade Nova de Lisboa, autora de vários artigos sobre problemas de estética, no domínio do conhecimento e linguagem) e de Luís Campos (Coordenador da Medicina Interna da Clínica CUF Belém, presidente do Conselho Português para a Saúde e Ambiente e um médico com particular propensão para as artes).
Maria Filomena Molder lembrou que “a cidade é o lugar dos anónimos, o lugar que favorece o anonimato até ao limite da inexistência e, por isso, o homem de que falamos não é ninguém, pode ser qualquer um, mas não é ninguém”. Recordando «O silêncio do corpo», livro de Guido Ceronetti, escritor, filosófico, dramaturgo e ensaísta italiano, defensor do poder do olhar cético sobre as coisas, ou se quisermos o olhar completo em volta que não se foca apenas num pormenor, Molder sublinhou o facto desta obra exibir com clareza as ligações fortes entre a Medicina (e na sua abrangência o combate à doença), a morte, a Filosofia e a cidade. Por outro lado, Molder reconheceu que “muitas das palavras que são usadas em Filosofia vêm da Medicina e a Medicina também apreende palavras da Filosofia. Isto é algo que se consolidou nos tempos dos gregos, de Hipócrates e os seus discípulos. Há aqui um dispositivo muito complexo, maravilhoso, do ponto de vista das palavras, de passagens e transposições de um domínio para o outro, que cria uma espécie de paisagem concetual muito rica. Ora na nossa época observamos exatamente o contrário, a grande dificuldade de transposição. Os vários domínios científicos tendem a fechar-se sobre si próprios e fazem traduções dos outros nos seus próprios termos, sem alargamento imagético nesta especialização. Na realidade, a especialização das tarefas humanas começa com a cidade”.
Para Ceronetti, de acordo com a filósofa portuguesa, nas cidades modernas e “na maior parte do exercício da Medicina, a compaixão, enquanto bem inestimável, foi arrancada para sempre, não só ao nível do ensino como da prática” e na perspetiva daquele autor “sem compaixão, nem o amor, nem a relação sexual ou a relação entre um pai e um filho, entre irmãos ou competidores, se validam”. Molder frisou no debate que «O silêncio do corpo» foi uma obra com grande impacto em Itália e, depois, noutros países, como França ou Inglaterra, para grande surpresa do escritor: “na quinta edição do livro, dez anos após o seu lançamento, Ceronetti redige um posfácio na qual surge um epígrafe muito interessante – Se és médico, medita, se meditas sê médico… É uma simetria falsa, como são todas as boas simetrias, do ponto de vista do pensamento, mas na realidade medicar e meditar devem ser inseparáveis. Mas a nossa época não deixa meditar. E, de qualquer modo, o doente também não quer que o médico medite muito, tem pressa e é vítima da voragem que o rodeia e da voragem que torna o médico o que é e que faz este último também ter muita pressa”.
Ao abordar os laços entre arte, medicina e cidade, Luís Campos recorreu à sua experiência pessoal para relatar visões e momentos em que a interseção destas três esferas fez pleno sentido e procurou também refletir sobre quais as razões que levam tantos médicos de profissão a aproximarem-se das artes, da literatura e da produção artística que anima as cidades: “talvez aconteça porque gostamos de pessoas. Temos, igualmente, uma grande curiosidade sobre a natureza humana e a Medicina é mesmo o mais fantástico observatório da natureza humana, especialmente para quem trabalha nas urgências, que consegue intuir neste meio as grandes transformações sociológicas do amanhã”.
O médico intimamente ligado às artes recordou que “os hospitais e infraestruturas de saúde são edifícios extraordinários que moldam a paisagem da cidade, para o bem e para o mal. Vejamos os exemplos, em Lisboa, do Hospital de Santa Maria ou da Fundação Champalimaud. Tive o privilégio de pertencer à comissão coordenadora que desenhou alguns dos hospitais a criar no âmbito das PPP, os últimos grandes hospitais públicos a serem construídos, no caso em Braga e Vila Franca de Xira (…) Nessa altura, tive de aprender os princípios do design hospitalar e perceber que um hospital tem de ser baseado em evidência, estar preparado para emergências, ser eficiente, seguro, escalável, convertível, multifuncional, conectado, ter tecnologias de comunicação robustas e ser ambientalmente sustentável”. Contudo, o ambiente vivido no hospital e nas suas imediações e a forma como este se encontra integrado na malha urbana é também um elemento crucial, como recordou o internista: “os diversos aspetos relacionados com o ambiente, que têm grande importância na recuperação do doente, foram devidamente estudados e integrados no trabalho que fizemos aquando do desenho destes hospitais, desde a cor das paredes ao ruído, odores, acesso à luz natural, iluminação, conforto térmico, texturas, facilidade de comunicação e, como é óbvio, a presença da arte”.
A arte visível, audível e sentida nos hospitais, não apenas como elemento decorativo e neutro, mas também terapêutico e humanizante, não é nada de novo. Todavia, nem sempre esta arte é utilizada no seu potencial maximizado. «Quando me tornei diretor do Serviço de Urgência do Hospital São Francisco Xavier, o ambiente era escuro e lúgubre e pensei de imediato como seria possível mudar tal cenário. Decidi pedir a 22 artistas, amigos, obras que pudessem ser colocadas no Serviço de Urgência. Recebemos um total de 87 obras, entre fotografias, serigrafias, pinturas, etc., que passaram a cobrir todo o serviço. Foi um passo que mudou radicalmente o ambiente do hospital”, explicou Luís Campos, que mais tarde transportou muitas destas obras e deste espírito de revitalização artística para o Serviço de Medicina e, depois, para o espaço global da unidade hospitalar. Desde 2014, o Hospital São Francisco Xavier é conhecido como «o Hospital das Artes» e tem obras espalhadas por todos os serviços, salas e quartos e até pianos em áreas de circulação e transição, sendo comum ouvir profissionais, utentes e familiares a tocarem no hall central da unidade.
Já no que respeita às suas próprias criações artísticas, Luís Campos abordou a temática das cidades em várias mostras e exposições. Em 1983, a exposição «Empty cities» deu origem a esse percurso, com um conjunto de fotografias num contexto de cidade pós-apocalíptica, sem presença humana. “Outra das séries que fiz, em 1994, porventura uma das mais conhecidas, é a «Transurbana». No caso, estamos a falar de fotografias de grande dimensão, com quatro metros e meio, que retratam a ausência de sentido de pertença a um território, de pessoas em zonas de fratura da cidade que vinham não se sabe de onde e que iriam também para parte incerta. Revelavam a ideia de que não somos capazes de nos sentir pertencentes a um território nas cidades como acontece nas aldeias, onde existem ritos, festas e acontecimentos que estão ligados ao ciclo da natureza”, garantiu o médico/artista. Em 2004, Luís Campos foi responsável por uma instalação de arte pública, integrada na Bienal da Luz (LUZBOA), colocada no Largo do Teatro S. Carlos, em Lisboa, intitulada «Limbo» e inspirada por um poema de Carlos Drummond de Andrade, no qual se lê que “Entre o Céu e a Terra assistimos ao espetáculo do mundo”. Esta instalação assemelhava-se a uma capela e a imagem da caixa de luz no teto era uma fotografia de mais de trinta corpos nus fotografados contra um espelho. O formato vídeo também foi usado por Luís Campos para mostrar reflexos inusitados da cidade, em particular nas obras «Paradise Troll», composição de imagens intercaladas de carrosséis estáticos ou em movimento e daqueles que nas bilheteiras esperam pelos primeiros clientes – numa demonstração clara da solidão das gentes das feiras – e «Dog’s City», um vídeo de aproximadamente 30 minutos, sobre a descoberta da cidade na perspetiva (e à altura) de um cão.
A cidade, na sua relação com a Saúde e a Medicina, também foi abordada pelo convidado desta sessão, numa época em que fenómenos extremos são cada vez mais vulgares e especialmente consequentes em apertadas malhas urbanas. “A cidade pode proporcionar doença ou saúde. Através de um mapa de Lisboa com as ilhotas de calor identificadas, podemos perceber que a diferença de temperatura entre o centro da cidade e as áreas fora dos limites urbanos pode ser de sete graus. Imagine-se o mal que isto pode infligir nas pessoas durante ondas de calor, principalmente nas mais vulneráveis, como as crianças, os idosos ou os sem-abrigo! É também em muitos destes locais que as pessoas mais sofrem com a poluição. Nove em cada dez pessoas, a nível global, respira ar que excede os limites de poluentes contidos nas diretrizes da OMS. A isto junta-se a poluição sonora. Mais do que um em cada cinco cidadãos da União Europeia está exposto a níveis crónicos e nocivos de ruído. Tudo isto tem um efeito sistémico na saúde das pessoas e sabemos hoje que uma em cada quatro pessoas morre por fatores ambientais”, lembrou Luís Campos.