«À Espera no Centeio», um dos grandes romances do século XX sobre essa fase mágica mas problemática das nossas vidas que chamamos, em moldes latos, de juventude, editado em 1951, marcou para sempre a memória que conservamos de J.D. Salinger, escritor nova-iorquino que se celebrizou sobretudo pelos muitos e excelentes contos que publicou em coletâneas ou em prestigiadas publicações norte-americanas como Collier’s, Esquire ou The New Yorker. Este relato, introspetivo e poderoso, sobre a alienação adolescente, através da voz do inesquecível protagonista, Holden Caulfield, estará no centro do debate da próxima sessão do Clube de Leitura APMGF, marcada para 16 de dezembro, pelas 21h00 e que terá como proponente Hélder Aguiar, médico de família que recentemente foi distinguido com o Prémio Literário Revelação Agustina Bessa-Luís. A participação no Clube de Leitura está sujeita a inscrição prévia, é gratuita para os sócios da APMGF e tem um custo de 35 euros para não sócios (valor que permite participar no ciclo integral). No final do ciclo, todos os participantes do Clube de Leitura que tenham assistido às sessões em direto receberão um diploma de participação entregue pela APMGF.
A obra «À Espera no Centeio» oferece-nos uma narrativa contada na primeira pessoa por um adolescente, a partir da casa de repouso na qual procura recuperar de um esgotamento. Holden relata as suas experiências durante os três dias seguintes à sua expulsão da ficcional Pencey Prep, uma prestigiosa escola preparatória na Pensilvânia. Holden, que constantemente usa termos coloquiais como “falso” para descrever a superficialidade do mundo adulto, considera-se um pária, de certa forma perdido num mundo dissimulado e oblíquo. Nas suas andanças, Holden luta para encontrar uma conexão genuína. Pensa em telefonar a várias pessoas — ex-namoradas, amigos de ocasião — mas, no fim, não consegue dar o passo final. A sua solidão é palpável. Idealiza a inocência da infância e teme a transição para a vida adulta, que equipara à corrupção e à perda de integridade. A sua fantasia final, como o título sugere, é ser um “apanhador no campo de centeio” — a pessoa que salva as crianças, absortas nas brincadeiras puras desenhadas no campo de centeio, de caírem de um penhasco para o contaminado mundo adulto.
O romance atinge o seu clímax quando Holden decide fugir para sempre, cortar os laços com a sociedade em definitivo, desaparecendo algures no Oeste. Phoebe, uma das suas irmãs e a única pessoa por quem nutre carinho, insiste em acompanhá-lo. Holden recusa a ideia, aborrecendo assim a menina de dez anos, a sua exclusiva união empática à raça humana, após a morte do irmão Allie. Para acalmá-la, leva-a ao Jardim Zoológico e ao observá-la no carrossel à chuva, a tentar agarrar o anel dourado como as outras crianças, vê-se imerso num raro momento de pura felicidade e conformação. Percebe que as crianças irão sempre arriscar e tentar a sua sorte, que tal movimento e audácia fazem parte do seu crescimento. Ele, Holden, não pode salvar as crianças, tem de confiar nelas… Experimenta, pois, um momento de clareza e decide não fugir. De qualquer modo, aos olhos da juventude que leu o romance, Holden nada mais precisava de fazer, era e seria a partir daí um herói no qual se poderiam refletir e procurar consolo, farol de segurança num oceano repleto de brumas e ambiguidades.
Para Hélder Aguiar, a história tem um significado muito especial: “é uma referência para mim. É a primeira obra que afunda a sério na alma jovem/adolescente e que faz o cruzamento entre literatura exigente e a juvenil/«young adult» com maestria. Provavelmente ninguém escreveu tão bem sobre uma experiência de transição para a idade adulta como o Salinger. É um romance fácil de ler, despretensioso e repleto de humor, entre o cinismo do Holden e os eventos caricatos em que ele se vê enfiado. No entanto, embrenhando na arquitetura psicológica do protagonista, o seu sarcasmo é uma espécie de máscara que ele usa para esconder o seu luto, trauma e idealismo. O Holden Caulfield é um «paciente literário» por excelência e o livro é um convite a ler nas entrelinhas, desafiando-nos a procurar a dor real, as suas origens e ramificações”.
Salinger fez questão de usar neste romance um estilo direto e pontuado por vernáculo, registo raro na prosa mais comercial, mas para o médico proponente tal escolha só engrandece o produto final: “esse código de linguagem direta, cínica e sarcástica, com alguns tiques, faz parte do que torna o Holden um personagem tão apelativo, autêntico e verossímil. Sentimo-lo como um adolescente típico, revoltado e desencantado com o mundo adulto (um sentimento que surgiu no pós Segunda Guerra Mundial e que se arrasta até hoje), mas, por outro lado, aprendemos também que é um jovem peculiar, com algumas obsessões e tendência para se auto sabotar na interação com os outros, muito introspectivo e idealista, fatores que o tornam muito especial e complexo, naquela zona cinzenta entre o normal e o patológico (e muitas teorias existem por aí sobre os traços patológicos do Holden). O livro é uma dança constante entre a coloquialidade e o que se pode inferir dela. Temos vários exemplos na obra em que um mesmo parágrafo tanto nos provoca o riso como nos faz sentir o coração apertado, ao mesmo tempo”.
Para todos aqueles que ainda não iniciaram a fascinante viagem pelo universo Holdeniano, Hélder Aguiar sublinha que “há muito para apreciar nesta obra” e que uma das coisas que mais o fascinou foi “o uso magistral da técnica do narrador não confiável. O Holden contradiz-se várias vezes, chega até a mentir, o que nos obriga a «trabalhar» como detetives para juntar as peças e decifrar a verdade emocional por baixo da percepção enviesada pela dor. É uma obra enganadora: sob uma camada superficial de aparente puerilismo/«superficialidade», apresenta-nos um núcleo emocional com muito para analisar e interpretar. Depois, claro, temos um excelente uso do humor e dos elementos metafóricos. Há duas metáforas centrais no livro – a dos patos e a relacionada com um poema de Robert Burns, «Comin’ Thro’ the Rye», que o Holden interpreta mal e potencia toda uma confusão na sua cabeça. Ambas relacionam-se com a busca central do protagonista e culminam na epifania/metáfora final da história, na famosa cena do carrossel”.
Hélder Aguiar admite que o personagem central do romance é um elemento polarizador, porém discorda daqueles que o encaram como arquétipo juvenil ultrapassado, com dúvidas, desafios e impulsos sem sentido no presente: “tanto provoca ódios como paixões. Nem todos o apreciarão. É certo que ele tem um tempo e um lugar, refletindo o jovem apático que nasceu de uma sociedade americana pós-segunda Guerra Mundial, eufórica, opulenta e extravagante. Mas não considero que esteja datado, não só por ser uma obra pioneira a retratar esse zeitgeist, mas também porque acabou por se tornar um retrato atemporal do trauma (stress pós-traumático), alienação, ansiedade social e crise identitária do jovem na transição para a idade adulta. Se pesquisarmos em fóruns de literatura (Goodreads, Reddit), o «À Espera no Centeio» continua a ser dos clássicos que mais desperta interesse e discussão nos dias de hoje e o romance faz parte do programa literário universitário um pouco pelo mundo fora. A obra é para mim uma excelente ponte de reflexão para a saúde mental dos jovens de qualquer época”.
É importante mencionar que Salinger, considerado por muitos um dos expoentes do modernismo literário americano, foi profundamente marcado pela experiência da II Guerra Mundial e da reconquista da Europa, já que desembarcou com as tropas americanas na Normandia e viveu na pele os horrores da marcha até Berlim. O impacto desta saga, ao mesmo tempo pessoal e geracional, forcou-o a ser hospitalizado por «fadiga de combate», moldou o seu carácter e contribuiu, após alta médica, para a escrita do conto «Estou louco», percursor de «À Espera no Centeio» que nos apresentou pela primeira vez o precoce e inusitado Holden Caulfield. Introvertido, por defeito e feitio, J.D Salinger acabou se tornar uma vítima do seu grande sucesso literário. O apreço público por «À Espera no Centeio» foi algo com que nunca conviveu bem, conduzindo-o a um progressivo isolamento da vida social e da esfera mediática. Desde os meados da década de 50 até 2010, data da sua morte, Salinger raras vezes abandonou o New Hampshire para onde se mudou em busca de tranquilidade e paz de espírito. Ali, encontrou o seu Oeste e a boa perdição.











