Letras de ouro… no quotidiano banal dos “invisíveis”

A publicação póstuma da coletânea de contos «Manual para Mulheres de Limpeza», de Lucia Berlin, datada de 2015, representa um dos casos mais notáveis de redescoberta literária do século XXI. O lançamento transformou a autora, amplamente ignorada em vida (pese embora a admiração de pares como Saul Bellow), numa figura importante da literatura americana, celebrada por sua escrita crua, honesta e profundamente humana. Três dos contos integrados nesta coletânea (Bloco de notas das urgências, 1977, Pesar e Mijito) vão estar no centro do debate da próxima sessão do Clube de Leitura APMGF, agendada para 8 de outubro, pelas 21h00 e que terá como médica proponente Paula Broeiro. A participação no Clube de Leitura está sujeita a inscrição prévia, é gratuita para os sócios da APMGF e tem um custo de 35 euros para não sócios (valor que permite participar no ciclo integral). No final do ciclo, todos os participantes do Clube de Leitura que tenham assistido às sessões em direto receberão um diploma de participação entregue pela APMGF.

Lucia Berlin, nascida em 1936 e desaparecida em 2004, levou uma vida fascinante e turbulenta, muito à imagem e semelhança das suas narrativas. Vivia em constante movimento, alternando entre empregos precários — rececionista em unidades de saúde, assistente clínica, operadora de central telefónica, professora, mulher de limpeza, tradutora, etc. — enquanto criava os seus quatro filhos e resistia a múltiplas relações conjugais tóxicas e ao fardo do alcoolismo. Ao longo de várias décadas, publicou esporadicamente os seus contos em pequenas revistas literárias e editoras universitárias. No entanto, o reconhecimento em larga escala nunca chegou. A sua obra, marcadamente autobiográfica, captura a realidade de vidas marginais e a complexa beleza encontrada na rotina, quase nunca analisada com atenção e muito menos merecedora de investidas estéticas.

Após a sua morte em 2004, a obra de Berlin corria o risco de desaparecer completamente. Porém, o seu amigo e executor literário, Stephen Emerson, dedicou-se a organizar os textos que deixará para trás. Em 2015, a editora Farrar, Straus and Giroux pega no testemunho e publica então «Manual para Mulheres de Limpeza», coleção de 43 dos seus melhores contos. Mas o que podem esperar os leitores do clube desta pequena amostra de três histórias muito curtas, fragmentos de uma obra maior da escritora norte-americana? Bloco de notas das urgências, 1977, narra a experiência da autora enquanto rececionista num serviço de urgências. O conto é uma série de vinhetas comoventes, baseadas nas anotações que Berlin fazia no seu bloco de notas. Nele, desfilam dezenas de personagens e situações peculiares e trágicas: bêbados, toxicodependentes, vítimas de acidentes e pacientes com dores crónicas. Berlin descreve tudo com um misto de humor negro e profunda empatia, mostrando a sua capacidade de encontrar humanidade e poesia mesmo nos ambientes mais caóticos e dolorosos.

Já o conto Mijito assume um formato original, com duas narradoras e duas perspetivas díspares sobre o mesmo processo: os primeiros tempos de vida de uma criança e o amor incondicional de mãe, mesmo que em estado de perigosa inconsciência e incapaz de travar a tragédia anunciada. De um lado Amelia, uma mulher de origem mexicana, mergulhada à força numa sociedade que lhe é estranha e a assusta, desamparada por um homem que caminha os trilhos da criminalidade, com um filho redentor (Jesus) prestes a nascer e a residir em casa alheia, com patronos abusivos. Tal como muitas outras jovens na sua condição, esta mulher procura ajustar-se como pode à sociedade de Oakland e aos EUA, tão distantes do pequeno povoado a sul da fronteira onde cresceu. Do outro, a visão da assistente de consultório no hospital pediátrico, onde a primeira mulher e a sua criança são seguidas, exausta pela longas horas de trabalho, as dificuldades de comunicação com as mães e as famílias – muitas delas em situação ilegal – os tratamentos a crianças debilitadas e com problemas crónicos graves, os desafios próprios de lidar com pessoas que sobrevivem nas margens da grande cidade, um dia de cada vez. Mas também o orgulho e a satisfação de servir os mais desfavorecidos, em particular esses miúdos que são como “um erro de Deus ao responder a preces”. As duas vão partilhar, sem saberem, uma viagem que culminará no triste suplício de Jesus.

O conto Pesar figura entre os textos mais pungentes de Lucia Berlin. Faz nota de um breve período de pausa e reflexão, tónico para duas irmãs que se reencontram numa estância de férias, após a morte da mãe. Ali, aprendem a digerir os traumas comuns do passado, a amargura do presente e a incerteza do futuro. Sally – marcada por uma mastectomia e pelo fim de uma relação que significa tudo para si – e Dolores (representação literária da própria Lucia Berlin), empenhada em resgatar a irmã do desespero, mas ela própria ciente de que em breve se entregará de novo a uma qualquer garrafa de ocasião. Nas franjas da ação encontramos ainda dois casais, os Wacher e os Lewis, espécie de espelhos que nos revelam como a sociedade julga estas mulheres, bem como César, homem do mar com quem Dolores conheceu outrora bons momentos e que sob proposta desta última leva Sally a mergulhar pela primeira vez, despertando na irmã mais frágil a vontade inesperada de reviver. Um homem que é mais do que um apelo masculino colocado entre duas irmãs… antes vulto magnético, encarregue de redistribuir energias. A prosa é simples e assertiva, concisa. Jamais se apanha a autora na armadilha dos eufemismos ou em atitudes desculpabilizantes. Os maus sentimentos, os remorsos e a brutalidade das relações são estendidos à luz do sol, como os corpos ociosos das irmãs.

“Sigo a cantora Luísa Sobral nas suas redes sociais. Identifico-me com as suas sugestões de leitura, nomeadamente, em maio, com a sugestão do livro «Manual para Mulheres de Limpeza». Coincidiu com o convite, pelos colegas Pascale Charondière e Mário Santos, para dinamizar o Clube de Leitura da APMGF”, recorda Paula Broeiro. A proponente da obra assevera que escolheu esta coletânea “por ser um livro de contos sobre a vida de mulheres reais com narrativas que abordam temas como maternidade, relações interpessoais, pobreza, migração. O contexto psicossocial em que se desenvolvem as narrativas amplia a minha compreensão do outro, enquanto médica de família, em particular, mulheres com vivências diferentes da minha”.

Para a dinamizadora da sessão, torna-se evidente que a escrita com que nos confrontamos quando lemos Berlin “é direta, com frases cheias de ritmo, com uma riqueza descritiva sensorial que permite alcançar contos curtos, muito bem conseguidos. A grande intensidade e variabilidade emocional potenciaram uma leitura intermitente da obra, apenas possível num livro de contos, mesmo que aqui e ali se retornem aos mesmos personagens e contextos. A riqueza das narrativas e a dimensão do livro fizeram-me priorizar alguns dos contos, permitindo no encontro do Clube de Leitura não nos dispersarmos. A escolha pessoal destes três contos, Bloco de notas das urgências, 1977, Mijito e Pesar, tiveram como propósito discutir assuntos atuais tangenciais com a Medicina Geral e Familiar, como a sobreutilização da urgência por situações psicossociais, a fragilidade social da maternidade de mulheres migrantes, ou ainda questões do ciclo vital e de como a morte de um progenitor conduz à reorganização do sistema familiar”.

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