A próxima sessão do ciclo de debates «Para além da Medicina: ao encontro das humanidades» (com entrada livre e sem inscrição prévia) terá lugar a 25 de setembro, pelas 17h00, no Anfiteatro II da Unidade Central da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. O mote geral escolhido é «Somos do passado e não sabemos». Os convidados são Carlos Fiolhais (destacado professor catedrático de Física da Universidade de Coimbra – UC – ensaísta e fundador do Rómulo-Centro Ciência Viva da UC) e Joel Cleto (arqueólogo, historiador, divulgador televisivo da história e do património). Já o médico de família deste encontro a três, companheiro/dinamizador da conversa será José Mendes Nunes, defensor de que é importante “valorizar e respeitar os avanços do conhecimento alcançados pelos nossos antecessores” e evitar a todo o custo o encantamento cego e incondicional por tudo aquilo que identificamos como contemporâneo e tecnológico.
O que está por detrás da escolha do título desta sessão e que matérias desejam aprofundar durante a vossa troca de ideias?
José Mendes Nunes – A ideia subjacente ao titulo é a necessidade de valorizar e respeitar os avanços do conhecimento alcançados pelos nossos antecessores. De certo modo, combater o encantamento pelo “novo” que valorizamos apenas porque é novo e porque a tecnologia nos fascina e deslumbra. A admiração pelo que é novo leva-nos a ignorar o que é antigo. Confundimos antigo com obsoleto e o novo com progresso. Daqui o titulo «Somos do passado e não sabemos», inspirado na parábola do Livro de Job (capitulo 8, versículos 8 e 9).
O título do ciclo «Para além da Medicina: ao encontro das humanidades» enfatiza a insuficiência do conhecimento cientifico para a prática da Medicina. A Ciência procura explicar as verdade dos factos, mas nada tem a ver com a importância, i.e, com o valor dos factos. Ora, atribuir valor aos factos científicos exige conhecimento das humanidades que nos permite fazer julgamentos sobre o valor do que fazemos. São as pessoas, objeto dos nossos cuidados, que devem atribuir valor ao que fazemos, mas para isso é preciso conhecê-las. Este conhecimento exige a reintegração das humanidades (digo reintegrar porque elas já estiveram integradas) na Medicina, seja a literatura, a arte e, sobretudo, a Filosofia Moral (ética). As emoções, além de estarem omnipresentes, são fundamentais para o exercício médico porque imprescindíveis para atribuir valor. São elas que nos ajudam a decidir, nas situações mais difíceis em que a Ciência pouco ajuda como são, por exemplo, as decisões de final de vida. Resumindo, as pessoas são constituídas por átomos e histórias, por isso para as ajudar é preciso conhecer não só a sua física, mas também as suas histórias.
Para além disso, esta separação das ciências das humanidades foi uma consequência da especialização que nos últimos anos evoluiu para a hiperespecialização. A incapacidade de gerir a incerteza é uma das causas para escolher a subespecialização: escolho este nicho de conhecimento porque posso controlar e ninguém saberá mais do que eu. Contudo, a subespecialização implica escolher o que se quer saber. E, nestas circunstâncias, escolhe-se saber cada vez mais de cada vez menos. Mas qualquer escolha implica renúncias e, neste caso, renunciamos ao conhecimento mais vasto, ou seja o subespecialista, à medida que sabe cada vez mais de cada vez menos, fica a saber cada vez menos de cada vez mais, isto é, a sua ignorância aumenta. Aumenta a especialização e a ignorância.
Está curioso para perceber que tipo de dinâmica pode ser criada entre dois divulgadores mediáticos com tanto carisma e saber, um proveniente da Física e o outro da História/Arqueologia?
Mais do que curioso, estou entusiasmado, pela expectativa do que aprenderemos com estes dois Cientistas. Pois o Professor Carlos Fiolhais é cientista das ciências naturais, mais precisamente da Física, e Professor Joel Cleto é das ciências humanas, mais precisamente a Arqueologia e História. Ambos têm o mesmo rigor nas matérias que investigam e procuram a verdade dos factos, sejam físicos ou da história, combatendo a não-ciência dos mitos, das crenças, do indemonstrável ou não refutável, na perspetiva de Karl Popper. Ambos procuram conhecer as verdades do universo. Não creio que surjam confronto de ideias, mas antes conhecimentos complementares que no final nos enriquecerão. Os dois são comunicadores por excelência, que partilham o mesmo objetivo: divulgar a ciência, combater a pseudociência. Tenho a certeza de que estarei fascinado pelas suas capacidades expositivas e, no final, nos vão fazer sentir: «o que é bom acaba depressa!». Espero que seja uma conversa descontraída, tipo, «um astrofísico, um arqueólogo e um médico de família encontraram-se à mesa do bar».
Na sua perspetiva, é importante em 2024 ainda fazer ver a quem pratica Medicina que a mesma não nasce desligada de um conjunto de acontecimentos, personalidades e casualidades do nosso passado coletivo?
Não “ainda” ser importante… é urgente integrar as humanidades no ensino e na prática da Medicina. Afinal o ser humano é demasiado complexo para o compreendermos só com ciência. O que distingue os humanos dos restantes animais é a sua capacidade de receber e transmitir informação. O ser humano é espiritual, biológico e físico. Se Descartes separou o espiritual do físico, ficando o físico para o médico, nos dias presentes reduzimos o físico àquilo que a Indústria (seja a Big Pharma, sejam outras relacionadas com saúde) tem para vender e tratamos seres humanos como sujeitos inertes. Digo sujeitos no sentido etimológico da palavra: de estar sujeito às decisões e imposições do poder. A MGF, sendo uma especialidade generalista, integradora, tem este dever e responsabilidade de ver o ser humano na sua complexidade com ciência e com humanidade.
Como olha pessoalmente para este ciclo desenvolvido pela APMGF? É uma oportunidade para sobretudo escutar, assimilar e refletir, ou também para interromper e intervir no diálogo?
A iniciativa de levar a cabo este ciclo «Para além da Medicina: ao encontro das Humanidades» é extraordinariamente louvável. Aqui presto homenagem a quem teve a ideia e à Direção Nacional por ter aceitado o desafio. Esta iniciativa será tanto mais válida e impactante quanto maior for a participação ativa de todos. Sim, com diálogo e interrupções (se pertinentes e sempre respeitosas). É no encontro e confronto de ideias que nos desenvolvemos e crescemos como profissionais e como pessoas. A Medicina Familiar é a arte de gerir a incerteza e estas sessões são importantes para nos consciencializarmos que sabemos pouco, sermos humildes e deixar que nos ensinem. A Medicina – e a MGF, em particular – é demasiado complexa e humana para se aprender apenas com médicos. Talvez neste reconhecimento da incerteza esteja a verdadeira «Medicina Quântica».