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Todos nos alimentamos do passado, mesmo quando olhamos para o futuro

Realizou-se ontem (25 de setembro), na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC), a sessão «Somos do passado e não sabemos», integrada no ciclo de sessões de debate intitulado «Para além da Medicina: ao encontro das humanidades», criado pela APMGF este ano para favorecer o debate interdisciplinar. Na ocasião, o diretor da FMUC, Carlos Robalo Cordeiro, elogiou o ciclo desenvolvido pela APMGF e os princípios que lhe dão forma, salientando que “sem uma componente que vai para além da cultura e do conhecimento médico, as pessoas que formamos não serão médicos completos”.

José Mendes Nunes (médico de família, ex-docente e investigador da NOVA Medical School) recordou, a propósito do tema da sessão, «Somos do passado e não sabemos», que é conhecida uma longa tradição histórica de grandes homens e mulheres se destacarem nas suas ações e palavras também graças àqueles que os antecederam: “os os profetas profetizaram a vinda do Messias e isso permitiu que depois os apóstolos conseguissem ver de mais próximo e identificar Jesus Cristo e falar com ele. Ou seja, é importante descobrirmos a verdade partindo de descobertas anteriores, precisamos de ter consciência do conhecimento de quem nos antecedeu, nas carreiras ou profissões que escolhemos. É o contrário de reinventar a roda!”.

Também na abordagem clínica ao doente, ignorar por completo o passado e colocar de lado a imperiosidade de «trabalhar novos passados» são atos que encerram sérios riscos, como atestou José Mendes Nunes: “quanto temos o doente à frente, deveríamos procurar descobrir o que outros já sabem sobre esta pessoa ou este problema de saúde. Infelizmente, muitas vezes ignoramos o que já foi feito antes. Em acréscimo, é importante que eu deixe registo daquilo que encontrei, para que aqueles que me sucederem possam ver o conhecimento adquirido sobre o doente. Em respeito a uma verdadeira atitude científica, temos de valorar os registos. Os registos fazem parte do ato médico e permitem que outros acedam ao conhecimento e possam dar continuidade ao processo terapêutico”.

Para Carlos Fiolhais (destacado professor catedrático de Física da Universidade de Coimbra – UC – ensaísta e fundador do Rómulo-Centro Ciência Viva da UC), a necessidade de dar mérito aos avanços (e instigadores do avanço) do passado é não apenas uma questão de justiça, no que toca à ciência, mas também de sustentabilidade: “a ciência é cumulativa, uma espécie de pirâmide. Vamos colocando coisas por cima, mas temos de saber o que está por baixo e o que está por baixo tem de ser sólido. Podemos alterar algumas coisas do que está para trás, mas não é possível mudar tudo, porque de outro modo o edifício desmorona. Com certeza que a ciência vive da descoberta, mas a descoberta tem de ser compatível com a maior parte daquilo que já se descobriu! Algo que se inventa ou se descobre e não se encaixa naquilo que já se sabe, torna-se insustentável…”.

Joel Cleto (arqueólogo, historiador, divulgador televisivo do património no Porto Canal) admitiu nesta conversa informal que embora a sociedade, em geral, dê algum valor à história e às conquistas do passado, mantém uma atitude ambígua relativamente ao que está para trás, sobretudo no que respeita às origens primordiais: “às vezes esquecemos algumas coisas, não as valorizamos ou fazemos mesmo por escondê-las”. De facto, o historiador frisou que somos – para além de seres humanos – criaturas animais, de certa forma dominadas pela influência da nossa própria herança genética: “o passado e a carga do passado, nesta perspetiva, condicionam o nosso presente. Mesmo enquanto espécie cultural, capaz de levar por diante grandes feitos civilizacionais, boa parte daquilo que fazemos e as nossas grandes obras são afetadas pelo nosso passado, resultam da nossa evolução e vêm lembrar-nos sempre que somos animais e primatas, algo que por vezes tentamos esquecer”.

Por outro lado, o divulgador de História ressalva que o passado ao qual damos valor e que procuramos enaltecer e difundir é e sempre será uma fabricação complexa e criteriosa, conceito que jamais nos deve escapar, se queremos ser honestos connosco próprios: “somos do passado e temos consciência disso, mas de quê passado? Há muitos passados e o passado instituído é uma construção do presente ou, se quisermos, em cada presente construímos uma imagem do passado. Aliás, o passado dos manuais escolares de hoje não é o mesmo dos manuais de outrora”.

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