Telma Miragaia, médica de família na Unidade de Saúde de Santo António (Centro de Saúde de Ponta Delgada – Unidade de Ilha de São Miguel, Açores) criou o ano passado com o marido na freguesia do Livramento, em Ponta Delgada, a Mata do Pópulo, um projeto que num terreno privado de aproximadamente 2 mil metros quadrados permite ensinar crianças a brincar ao ar livre, em contacto com a natureza. Conheça um pouco melhor esta intervenção bem necessária e saudável na comunidade, que devolve à infância coletiva alguns dos valores fundamentais que tem vindo a perder na era digital, em detrimento do bem estar dos nossos pequenos.
Quando e como surgiu a ideia de desenvolver a Mata do Pópulo?
A ideia de criar a Mata do Pópulo surgiu após o nascimento do meu filho Xavi, um acontecimento que me fez recordar as boas memórias da minha infância na natureza. Ao constatar as grandes diferenças entre a infância que as crianças de hoje vivem comparada com a nossa, decidi idealizar um espaço onde possamos regressar às nossas brincadeiras de antigamente e assim mostrar às crianças e famílias que ainda é possível brincar de forma livre na natureza, sujarem-se e divertirem-se longe dos ecrãs.
Outro facto que pesou na decisão de criar a Mata do Pópulo veio da minha prática clínica como médica de família. Ao ver cada vez mais crianças com atraso global de desenvolvimento devido à falta de um ambiente preparado para se desenvolverem, porque os seus períodos sensíveis, como o do movimento, não estão a ser respeitados, fez-me motivar a passar à ação em vez de ficar apenas por explicar as recomendações preconizadas pelas várias sociedades cientificas. Dizer aos pais que não devem expor uma criança a ecrãs antes dos 3 anos de idade, porque isso vai afetar o seu desenvolvimento, não serve de muito se não mostrarmos alternativas de como brincar com elas e que atividades são benéficas: é necessário que as nossas crianças reaprendam a brincar ao ar livre.
A Mata do Pópulo é um projeto familiar juntamente com o meu marido e o meu filho. Começámos a construir o projeto em abril de 2023 e entre junho e agosto fizemos algumas sessões-teste com amigos, conhecidos e familiares. Tivemos sessões cheias de famílias, cujo feedback foi tão bom que nos motivou a dar continuidade a mais sessões.
Tivemos a nossa inauguração oficial no dia 16 de setembro de 2023, estamos em funcionamento há pouco mais de um ano e já vemos tantas mudanças nas crianças que participam nas nossas atividades que nos dá esperança que ainda é possível reverter esta pandemia de ecrãs que se instalou no Mundo e que está a ter consequências desastrosas nas crianças e em toda a humanidade. Para perceberem melhor este impacto, recomendo o documentário de 2020 “o dilema das redes sociais”.
Como definiria, de forma sumária, o que oferece às crianças este projeto e que reação tem colhido da parte dos micaelenses?
O que ofereço é vitamina N (natureza) ou seja, prescrevo a vitamina com mais carência neste momento nas crianças desta geração. A Mata do Pópulo é um espaço onde as crianças podem brincar livremente inspirado nas escolas da floresta (forest schools), um modelo educacional ao ar livre desenvolvido em países escandinavos desde 1950. Respeitando todo o entorno da Mata e a sua biodiversidade construímos pequenos ambientes onde as crianças podem explorar e aprender num contexto mais informal. Ao brincar na nossa cozinha de lama ou na caixa de areia, correr pela Mata ou até a descansar na rede, as crianças conectam-se com a natureza de forma extremamente natural. Participando nas propostas que vamos realizando ao longo do ano aprendem sobre a nossa flora e fauna, constroem abrigos e cabanas, participam com as suas famílias e colegas em atividades de lazer ao ar livre, que tanta falta fazem, pois vivemos num mundo apressado cheio de ecrãs. Realizamos playgroups para famílias com cerca de 20 crianças por sessão, férias na Mata, festas de aniversário e recebemos escolas e ATLs. Após uma atividade que fizemos em parceria com o Centro de Desenvolvimento Infanto-Juvenil dos Açores (CDIJA), algumas crianças com perturbação de espectro do autismo e hiperatividade e défice de atenção passaram a frequentar a Mata regularmente.
Várias pessoas que já visitaram a Mata dizem-nos: “isto faz-me mesmo lembrar os meus tempos de infância!”. E é mesmo isso que pretendemos, que as boas memórias das nossas infâncias voltem para podermos mostrar aos nossos filhos como éramos felizes nas brincadeiras ao ar livre, com liberdade para sujar, trepar, correr, e que eles também possam desfrutar delas.
O sorriso e alegria das crianças é o nosso maior indicador de sucesso. Muitas delas nunca tinham subido a uma árvore ou brincado à chuva antes de irem à Mata e sabemos que são experiências que as vão marcar para o resto da vida. Esperamos que quando elas se tornem pais e mães, se lembrem destes momentos de conexão com a natureza e proporcionem momentos com muita vitamina N às futuras gerações.
Quantas crianças já passaram pela Mata do Pópulo desde a sua abertura?
Desde a abertura, há pouco mais de um ano, já passaram mais de 900 crianças no nosso espaço. No entanto, o impacto da Mata vai muito além de quem nos visita. Das escolas que recebemos, quase todas mudaram os seus recreios e criaram um espaço com terra, cozinha de lama, caixa de areia, ou seja, o nosso impacto vai mais além dos momentos vividos no nosso espaço, eles levam ideias do que vivenciaram na Mata para as escolas e quintais. Ainda na semana passada fomos montar uma cozinha de lama ao quintal de uma criança com trissomia 21 que passou 2 horas a explorar a nossa cozinha da Mata e a mãe, fascinada ao vê-la a brincar assim, decidiu que queria este tipo de brincadeiras no seu dia-a-dia.
Recordo que em 2020 um estudo finlandês, publicado no Science Advances, revelou que as crianças desenvolveram um microbioma mais diverso e tinham mais proteínas anti-inflamatórias nos seus organismos após um mês de atividades em áreas verdes. Para isso, mudaram os recreios das creches, colocando áreas verdes, o que melhorou a imunidade das crianças em pouco tempo.
Enquanto médica de família, sente que a vivência e os estímulos da Mata do Pópulo podem influir positivamente na saúde das crianças?
Longe vão os tempos em que as ruas se enchiam de crianças para brincar às escondidas, apanhadas, elástico, macaca, polícias e ladrões, jogar à bola e tantas outras brincadeiras sem nome atribuído que ficam apenas na memória de quem as vivenciou. O divertimento só era interrompido à noite com o grito dos pais: “Vamos jantar!”, como acontecia na minha pequena aldeia de Donfins do Jarmelo onde nasci e vivi até aos 10 anos, podendo brincar livremente num raio de três quilómetros.
Nas últimas décadas, os ecrãs apoderaram-se da infância das crianças que passam horas imóveis, desconetadas do mundo real e da natureza o que levou Richard Louv a usar o termo perturbação/transtorno de défice de natureza no seu livro “A última criança na natureza”. No geral, as crianças vão de carro para a escola, ficam entre as quatro paredes da sala de aula quase todo o dia, voltam de carro para casa ou para as atividades extra-curriculares. Em média, as crianças passam menos tempo ao ar livre (1 hora) do que os prisioneiros que têm 2 horas por dia.
As consequências desta mudança radical na infância já são notórias a nível de saúde: sedentarismo, obesidade, doenças mentais, hiperatividade, doenças crónicas como hipertensão arterial e diabetes tipo 2 em idades cada vez mais jovens. Na minha prática clínica, o que me tem preocupado nos últimos anos é o atraso global de desenvolvimento detetado logo pelos 15-18 meses devido ao abuso de ecrãs que não permite às crianças terem as condições necessárias para se desenvolverem: o movimento! A nível da linguagem a mesma situação… as crianças têm mais companhia de ecrãs do que da figura humana, não permitindo ver como as palavras se articulam corretamente. As crianças que estão a nascer agora são a primeira geração de filhos cujos pais já não brincaram na rua, em brincadeiras não estruturadas, pelo que é ainda mais difícil reconhecerem a importância do brincar na natureza quando eles próprios já não o fizeram. Também é a primeira geração que se estima que vá viver menos anos que os seus pais, caso não mudemos o atual estilo de vida das nossas crianças. Alguns pais, preocupados com a iliteracia motora dos filhos, inscrevem as crianças em diversas atividades desportivas estruturadas, deixando pouco tempo para a brincadeira livre devido às suas agendas sobrecarregadas.
Com a Mata do Pópulo pretendemos ao nível da saúde das crianças (cientes que possam parecer objetivos um pouco ambiciosos ou até utópicos) diminuir o sedentarismo e obesidade infantil, uma vez que os Açores é a região de Portugal com a mais elevada taxa de obesidade infantil (23%) e excesso de peso (43%) segundo o estudo COSI 2022, combater o analfabetismo motor presente em muitas crianças (46% dos alunos do 2.º ano, com 7-8 anos, não consegue dar uma cambalhota e 40% revela-se incapaz de saltar à corda), diminuir o tempo que as crianças passam sentadas (sitting time) que é um fator de risco cardiometabólico, contribuindo para o surgimento de diabetes tipos 2, hipertensão arterial e doenças cardiovasculares em idades cada vez mais precoces, trabalhar “soft skills” (habilidades emocionais e sociais), tais como valores, criatividade, pensamento crítico, trabalho em equipa, cuidar dos outros – necessários às próximas gerações que vão competir com máquinas/robots para terem uma profissão. Como objetivo a longo prazo, pretendemos aumentar a esperança média de vida dos habitantes da ilha, que nesta região é a mais baixa de Portugal (78,18 anos).
Para colegas seus que possam ficar agradados com esta proposta e gostassem, inclusive, de reproduzir algo de similar nas suas regiões, que sugestões lhes deixaria?
O primeiro passo é acreditar que o brincar na natureza e ao ar livre é uma urgência para as nossas crianças e deveria ser a maior prioridade dos governos. Como médicos, devemos elucidar que é necessária uma mudança a nível de educação em que as crianças têm de sair das quatro paredes da escola e vir para a rua aprender; retroceder nos manuais digitais e regressar ao papel como os países nórdicos já fizeram e repensar os recreios e o uso de telemóveis nas escolas. A nível da saúde, não basta os médicos alertarem os pais para as várias recomendações sobre o uso de ecrãs. O problema vai mais além das horas que passam sentados em frente aos ecrãs, centrando-se antes no que deixam de fazer por estar sempre no mundo digital, o circuito de dopamina que cada vez quer mais e mais, como ocorre em qualquer outro vício. As crianças deixam de ter prazer nas pequenas e belas coisas da vida, terminando muitas vezes com problemas mentais, como ansiedade e depressão. Temos de dar alternativas prazerosas.
Para reproduzir um projeto similar devem tirar a formação de Líderes de Escola da Floresta nível 3 (Level 3 Certificate for Forest School Leaders) com formadores certificados que vêm do Reino Unido a Portugal fazer esses cursos. O curso que terminei em abril de 2024 foi lecionado por Dave Churchward, da Little Acorns Forest School e nele aprendemos tudo o que é necessário para criar um projeto deste género, desde manusear ferramentas, cozinhar no fogo, avaliação cuidada dos vários riscos e como os minimizar.
O curso tem inicialmente uma parte prática, seguida de seis meses para a elaboração de um portfólio em inglês com cerca de 100 páginas e, no final, avaliação prática. Apesar de ser médica, tive de fazer na floresta o curso de primeiros socorros ao ar livre (outdoor first aid) e pediátrico (pediatric first aid) para obter a minha certificação. No nosso projeto, também ajuda o facto de ter formação em Montessori, pois consigo perceber melhor as várias etapas do desenvolvimento infantil para poder criar o ambiente preparado às necessidades das crianças. Não esquecer também a parte burocrática, como seguros de responsabilidade civil e acidentes pessoais.
Que planos futuros têm para a Mata?
A ilha de São Miguel, também designada de Ilha Verde, é um dos paraísos de maior beleza natural do mundo. Apesar disso, notamos que as crianças exploram pouco os parques, reservas naturais e florestas pelo que este projeto pretende que mais crianças se sintam motivadas a brincar na natureza com as suas famílias. Assim, o nosso objetivo é que o brincar na natureza chegue a todas as crianças de São Miguel, mas para isso será necessário apoio da parte governamental, nomeadamente da área da educação, para a criação de protocolos que permitam às escolas virem à Mata do Pópulo de forma regular, como já acontece por exemplo no Município de Ovar com o projeto “Tribo Terra”, o projeto que nos inspirou. Este município recebeu este mês o prémio de excelência autárquica na área da educação devido a esta parceria com a escola da floresta “Tribo Terra”. Bons projetos e ideias já existem, só têm de ser replicados em vários locais para terem impacto mais global.
Conhecendo o clima instável dos Açores, arquipélago em que chove muitos dias do ano, pretendemos disseminar o proverbio nórdico “não existe mau tempo, apenas roupa inadequada”, para que os impermeáveis e galochas passem a fazer parte do guarda-roupa de todas as crianças açorianas. Nos países do norte da Europa, as crianças passam a maior parte do tempo na natureza todo o ano, e mesmo com temperaturas negativas fazem sestas na rua. Em Portugal temos um clima espetacular e aos primeiros pingos de chuva os pais levam as crianças para casa. Nos Açores, apesar da chuva o clima é ainda mais ameno e raramente está frio, pelo que não há motivo para prendermos as crianças em casa.
Como diz o professor Carlos Neto, o grande defensor do brincar em Portugal: “Libertem as crianças”. Para finalizar, deixo uma frase com mais de 100 anos escrita pela médica italiana Maria Montessori, uma mulher que revolucionou a educação no Mundo e que é a minha inspiração: “Deixai as crianças em liberdade; deixai-as correr lá fora sob a chuva, tirar sapatos e pular nas poças d´água; pisar, descalças, a relva húmida dos prados; que elas possam descansar tranquilamente sob a sombra acolhedora de uma árvore, gritar e rir à tépida luz de um Sol nascente que acorda todos os seres vivos que têm seu dia dividido entre vigília e sono”. In “A Descoberta da Criança” de Montessori Capítulo “A natureza na educação” (1ªed 1909)